OPINIÃO | Notícia

O Natal e a dignidade pelo avesso

Mesmo com certa arritmia da confiança, arrisco uma hipótese: a nossa governadora talvez venha recebendo um assessoramento com poucas virtudes

Por DAYSE DE VASCONCELOS MAYER Publicado em 15/12/2024 às 5:00

Integro o universo de Poliana, o clássico da literatura infanto-juvenil. Por isso não me liberto do “jogo do entusiasmo”, mesmo provisório. Até encaro com otimismo as boas ações de alguns políticos. Por isso interpretei com “a insustentável leveza do ser” a decisão da nossa governadora Raquel Lira de desmembrar a Secretaria de Educação e Esportes. O maior receio é que ela vá adiante na criação da “secretaria executiva para a causa animal” com a finalidade de coordenar e executar ações de conscientização sobre “direito dos animais”, algo incabível ou rejeitável.

Mesmo com certa arritmia da confiança, arrisco uma hipótese: a nossa governadora talvez venha recebendo um assessoramento com poucas virtudes. Outro ponto relevante: mesmo sendo fã incondicional do sorriso da chefe do executivo estadual, tenho receio de que ela tenha sucumbido à vocação do Executivo federal de alargar a máquina administrativa para satisfação dos devotos, esquecendo o mais relevante de tudo: a questão da dignidade humana. Em tempo de comemoração do nascimento do filho de Deus, tal reflexão é fundamental.

Busco subsídio inicial na poesia de Manuel Bandeira - “O Bicho”: “Vi ontem um bicho/na imundície do pátio/catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa, /Não examinava nem cheirava:/ engolia com voracidade. /O bicho não era um cão, /não era um gato, /não era um rato. /O bicho, meu Deus, era um Homem”.

O verso de Bandeira é uma lição exímia para juristas, políticos, magistrados e outros profissionais acerca do princípio da dignidade da pessoa humana. Aliás, um dos maiores autores portugueses - José de Oliveira Ascensão – gostava de dizer que a criação de um direito dos animais é um deslustre para o nosso sistema.

Paulo Otero não se afasta dessa compreensão. Um e outro tomam como referencial a fonte de todas as fontes: a Constituição em seu art. 1º, inciso III: A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Igualmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, em seu art. 1º: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”...Em síntese, no cerne do Direito estará sempre a pessoa humana. Não se pode avançar um passo no conhecimento jurídico sem embarrar na necessidade de uma concepção do homem, da natureza humana e da dignidade humana.

A palavra dignidade, com origem no latim “dignitas”, significa na grandeza religiosa e filosófica, que o homem tem dignidade porque é criatura de Deus. E foi o cristianismo que concorreu para a valorização do homem e para a universalização da consciência da dignidade da pessoa humana. Na Bíblia, vamos encontrar “E Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gen. 1.26-27).
Três conclusões rematam essa ideia: a “dignidade” é inerente apenas ao ser humano; todas as dimensões protetivas juridicamente fundamentais rechaçam a ideia de um direito voltado para seres irracionais; o conceito-fundamento de dignidade humana é um princípio aberto, dinâmico e transtemporal, todavia em nenhum estádio civilizacional será possível acatar um direito dos animais, exceto como aberração ou anomalia.
Dirão muitos leitores que as prateleiras estão cheias de livros, teses e artigos sobre “direito dos animais”. Justifica-se: o direito de pensar é livre. Até mesmo para estudos que prestam um desserviço ao Direito e concorrem para aviltar ou degradar o ser humano.

Acresce a essas considerações, o fato de que a dignidade humana mantém uma relação simbiótica com o valor liberdade: liberdade de aprender e de ensinar, liberdade de expressão e informação; liberdade de escolha da profissão; liberdade de planejamento familiar. Tais afirmações não significam que os animais devem ser maltratados, molestados e abandonados. Isso porque tratamentos dessa natureza ferem e violentam a dignidade do homem.

Dezembro é um mês pródigo em afetos e valorização do homem na condição de criatura de Deus. É também o momento para uma conclusão ultrajante: os animais estão sendo mais relevantes, amados e respeitados do que as nossas crianças e os nossos idosos. O governo precisa realmente criar parcerias público-privadas, mas com o objetivo de melhorar o padrão da saúde dos necessitados. Eles é que têm direitos que precisam ser reverenciados. Gosto de recordar, nessa quadra, o diálogo contido numa das obras de Durrenmatt: Qual é a sua profissão? Filósofo – responde o outro. Que entende por essa palavra? É uma pessoa que pensa muito e nada faz. Mas ele ganha dinheiro?

Dinheiro, poder e bens materiais são as prioridades atuais do mundo. “Quanto vale o homem / Menos, mais que o peso? / Hoje mais que ontem? / Vale menos velho? / Vale menos morto?”. Eis a indagação de Carlos Drummond de Andrade em um de seus poemas mais caros. Temos que lembrar essas interrogações na hora mágica do nascimento do menino-Deus. Os animais serão importantes para adorno do nosso presépio.

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciência política e direito.

Compartilhe