OPINIÃO | Notícia

Os sentidos de um bicentenário: a Confederação do Equador

É preciso tomarmos o protagonismo sobre os sentidos que auferimos a essa história, conectando-a com as demandas presentes e demandas mais amplas.

Por DIRCEU MARROQUIM Publicado em 27/07/2024 às 0:00 | Atualizado em 27/07/2024 às 7:08

Certa vez, numa formação para professores de uma rede pública em Pernambuco, uma docente perguntou: "Qual o sentido de celebrarmos o bicentenário da Confederação do Equador?" Fiquei em silêncio, pensando em como responder de maneira historiograficamente fundamentada, mas me perdi em outras perguntas: se a história não faz sentido para a professora, os estudantes se interessariam? E pior, como poderia contar essa história de forma a engajar a professora?

Fiquei em silêncio por alguns turbulentos segundos e respondi sem muita convicção. Saí dali com a certeza de que a História precisa fazer sentido para quem a escuta, precisa daquele estalo que conecta o presente ao passado e abre um sorriso. Com o perdão da demora, neste julho de 2024, no calor das celebrações do bicentenário da Confederação do Equador, procuro respondê-la como gostaria de ter feito.

O antropólogo Michel-Rolph Trouillot escreveu sobre a ambiguidade semântica da palavra "história", referindo-se à distinção e sobreposição entre o que ocorreu e o que se diz ter ocorrido. Assim, as histórias que nos encontram aqui e agora estão repletas de outras narrativas, e com a Confederação do Equador não é diferente.

Para falar do que ocorreu, recuo ao dia 2 de julho de 1824, no Recife. Eclodiu a Confederação, liderada por nomes como Manuel de Carvalho Paes de Andrade, Frei Caneca, e outros líderes provinciais. Motivados pelo descontentamento com a centralização política de Dom Pedro I, imposta pela Constituição de 1824, os confederados proclamaram a independência, buscando um governo republicano e descentralizado. A repressão foi severa, com tropas enviadas por Pedro I e uma frota comandada pelo almirante Cochrane, resultando em confrontos violentos e na captura e execução dos líderes do movimento, incluindo Frei Caneca. Esse episódio histórico destacou a luta local contra o centralismo imperial e influenciou o desenvolvimento político do Brasil nas décadas seguintes.

Por outro lado, vale apontar o quanto se disse o como essa história aconteceu. Como quase tudo, história é disputa. A esse respeito, a pesquisadora Sílvia Fonseca constatou as várias maneiras de recontar esse passado. Partindo do momento posterior à repressão do movimento, no qual o governo imperial retratou os líderes como "facciosos", minimizando sua importância histórica. No período regencial e segundo reinado, a memória foi reavaliada, com alguns políticos vendo os líderes como mártires republicanos. Com a Proclamação da República em 1889, a Confederação foi celebrada como precursora da república e símbolo de resistência ao autoritarismo. Durante o governo de Getúlio Vargas, a narrativa destacou a autonomia regional sem desafiar a unidade nacional.

Em Pernambuco, a história da Confederação do Equador passou por muitas reavaliações. Após 1889, Frei Caneca foi visto como o verdadeiro mártir da República, contrastando com a construção de Tiradentes como herói nacional. No centenário, em 1924, houve um grande investimento estatal em solenidades e festejos públicos. Nas celebrações dos 150 anos, em 1974, o Arquivo Público do Estado fez uma grande exposição com documentos originais, contando a história, embora de forma pouco crítica, da Confederação.

Hoje, 200 anos depois, a pergunta é: o que falta para essa história fazer sentido? Respondo: falta gente. Entender que aquelas pessoas existiram como nós, hoje, faz toda diferença. Refiro-me a sujeitos como Francisco. Ele foi um homem negro, africano, trazido ao Brasil como escravizado, que teve uma trajetória notável ao entrar no Batalhão dos Henriques. Essa tropa era composta por homens negros e foi fundada por Henrique Dias, ainda nos dias da luta contra os holandeses. Nas lutas em 1824, Francisco passou a ser visto como "famoso artilheiro" da Confederação do Equador.

Sua participação não apenas evidenciou sua competência técnica, mas também simbolizou a resistência e superação das barreiras sociais e raciais impostas pela escravidão. A trajetória de Francisco, estudada pelo Prof. Marcus Carvalho, exemplifica a significativa contribuição de africanos e afrodescendentes nos movimentos de resistência do Brasil do século XIX. Foram centenas de homens e mulheres, cuja presença habita as cidades.

Assim, estimada professora, comungo do seu desconforto. Mas acredito que é preciso tomarmos o protagonismo sobre os sentidos que auferimos a essa história, conectando-a com as demandas presentes e vendo-a como parte de uma luta mais ampla por direitos e justiça social. A história da Confederação se escreve, sobretudo, no hoje.

Dirceu Marroquim, doutor em História Social pela USP e sócio efetivo do IAHGP.

 

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