OPINIÃO

A doutora guardou a fatura?

Sartre tinha razão, "o inferno são os outros.

Imagem do autor
Cadastrado por

DAYSE DE VASCONCELOS MAYER

Publicado em 05/05/2024 às 0:00 | Atualizado em 05/05/2024 às 18:01
Notícia

Dizem que na idade provecta as arapucas e emboscadas são reiteradas. Felizmente, descobri que a "Claro", a exemplar prestadora de "bons serviços", era uma grande protetora dos idosos. Por isso ela decidiu silenciar o meu telefone fixo há mais de dois anos. Tudo isso para que eu não fosse incomodada pelos larápios ou trapaceiros. Ainda assim, insisti na visita de um técnico. Os "experts" asseguraram que meus quatro aparelhos estavam imprestáveis. Outros deveriam ser adquiridos. Assim procedi.

Os especialistas retornaram após a compra. Imitando Einstein com a sua foto icônica mostrando a língua, eles foram talhantes: "a doutora foi desgraçadamente enganada". Venderam-lhe os quatro aparelhos defeituosos". Na sequência, veio a frase abjeta: "Mas a senhora guardou a sua nota fiscal, não foi? "

Cheia de arrependimento e remorso, a "Claro" zerou o item telefone fixo. Algumas vezes, quando desejo esticar meu soninho, o telefone da mesa de cabeceira emite um gemido nostálgico, muito semelhante ao miado de um gato recém-nascido. Mas fica nisso.

Enfim, o meu contato com o mundo passou a ter dois canais: o celular e o correio. Foi justamente pelo carteiro que chegou a notificação da Prefeitura de Suzano em São Paulo. Preciso dizer que meu conhecimento geográfico anda desatualizado. Desconhecia a existência desse município, embora ele possua mais de 600 indústrias e quase 7.000 empresas. Além disso, Suzano é conhecido pela sua população japonesa e italiana e pela produção de flores.

Mas a apresentação do meu algoz poderia ter sido diferente. Talvez indo a São Paulo após 30 anos de ausência. Assim não sucedeu. Foi necessária uma multa gravíssima infligida, erradamente, a meu veículo. Segundo a notificação, eu havia trafegado numa rua de nome esquisito - Yolanda Shigueta Sudo - e na contramão. A infração ocorreu na semana do meu aniversário quando eu recebia hóspedes de Salvador, Rio, Brasília e São Paulo, uma delas magistrada e outra da Polícia Federal. Analisei a multa com olhos de polícia e percebi que o número da placa continha uma incorreção no meio. O número 2 foi substituído por uma letra. Ainda desacreditando no fato insólito, enviei um e-mail à Corregedoria do órgão de trânsito esclarecendo a situação e pedindo que abrissem um processo para averiguar a existência de crime.

A resposta foi vapt-vupt: "Sugerimos que entre em contato com a Junta Administrativa de Recursos de Infração (JARI), da Secretaria Municipal de Transporte e Mobilidade Urbana, para maior presteza às orientações referentes a multas e recursos". Ordens são ordens, mesmo pouco luzentes. Fiz o que a Corregedoria determinou. Recebi uma lista de exigências para defesa e fui célere no recurso. Anexei também a declaração da magistrada-amiga informando que eu estava no Recife no dia da suposta infração de trânsito. Transportava os meus convidados no veículo multado para que conhecessem as maravilhas do novo Recife. Recebi, na sequência, a seguinte resposta: "Bom dia, documentos recebidos, a análise demora em torno de 20 a 30 dias".

Conversei com uma amiga advogada. Soube que ela viveu problema análogo. A diferença é que a infração indevida foi no Recife e ela aguardou um ano para a solução do problema. Disse-me que os processos são tantos que os funcionários fazem a leitura por amostragem. Espero que o sorteio me seja favorável.

O Brasil é o segundo maior país do Mundo com índices de fraudes (consoante dados de 2023). Estou exausta de tantos "lembretes" de compras jamais efetivadas, saques bancários inexistentes e ações vitoriosas em Brasília, desde que as custas sejam pagas de imediato. Há sempre o fornecimento dos telefones para confirmação ou rejeição dos dados informados. Ontem, uma médica narrava, durante um almoço, que havia perdido um irmão há seis anos. Ele morava numa cidadezinha do interior de Pernambuco e tinha apenas 42 anos. A conclusão do inquérito foi suicídio. O rapaz era destro, a bala entrou na cabeça pelo lado direito e o revólver foi encontrado no lado direito do corpo. Não havia resíduos de chumbo ou pólvora nas mãos do falecido. O "suicida" havia casado recentemente, estava feliz, a esposa grávida e a vida financeira do casal estava equilibrada. A médica procurou o delegado e escutou perplexa: "nada é possível fazer. A esposa foi ouvida e afirmou, categoricamente, que o marido se suicidara. Acossou-me um disparate: "e se a esposa tivesse assassinado o marido? Uma semana depois, a detetive profana recebeu uma carta anônima curta e grossa: "esqueça a morte do seu irmão. Você tem marido e filhos". E ela esqueceu.

Aliás, o esquecimento é algo muito comum nesses casos. Uma senhora residente no Rio passou o final de semana em Paraty. Quando retornou haviam furtado suas joias, dinheiro em espécie e outros objetos de valor. A fechadura do apartamento não apresentava sinais de arrombamento. Era do conhecimento geral - inclusive do síndico - que o porteiro integrava uma facção criminosa. Temendo o pior, a lesada vendeu o apartamento e deixou o problema para o novo adquirente. Nesse momento, ela está fazendo aquilo que os condôminos mais odeiam: a reforma do bem adquirido. Sartre tinha razão, "o inferno são os outros.

Dayse de Vasconcelos Mayer é advogada e professora universitária.

 

Tags

Autor