Otimismo desconfiado
Os brasileiros podem ter um otimismo desconfiado em relação a este ano de 2024. Podemos continuar numa rota de estabilidade com modesto crescimento, nada espetacular porque o Brasil

Em 2023 o Brasil pulou uma fogueira, superou as ameaças autoritárias e consolidou as instituições democráticas. Apesar dos escorregões do alinhamento ideológico externo do presidente Lula da Silva, o Brasil reassumiu seus compromissos ambientais e recuperou a respeitabilidade internacional. O país melhorou em todos os aspectos, embora continue fraturado pela polarização política. Apesar dos discursos populistas de Lula, das pressões do PT-Partido dos Trabalhadores e da avidez por gastos do Congresso, o Brasil conseguiu conter a expansão das despesas públicas, até porque o Teto de Gastos ainda estava em vigor neste ano. Mesmo assim, o país terminou 2023 com um déficit primário de R$ 170 bilhões. O desempenho geral da economia brasileiro no ano passado superou todas as expectativas: inflação próxima da meta, crescimento do PIB-Produto Interno Bruto acima das previsões (puxado pela expansão do agronegócio), câmbio estável, declínio do desemprego e elevação da nota de crédito do Brasil pelas agências de classificação de risco.
O governo conseguiu aprovar um novo arcabouço fiscal para substituir o Teto de Gastos, que tinha implodido por conta da rigidez dos gastos, recuperando a credibilidade da política macroeconômica e a confiança dos agentes econômicos na economia brasileira. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, negociou e logrou aprovar a reforma tributária, uma conquista fundamental para o futuro da economia brasileira, mesmo com as diversas exceções introduzidas pelos grupos de interesse. O rigor monetário do Banco Central, que resistiu às pressões grosseiras do presidente para redução da taxa de juros, teve um papel relevante no controle da inflação, completando a gestão fiscal competente e responsável de Haddad. Entretanto, a persistência do déficit primário elevado e, principalmente, a baixa taxa de investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo), que chegou a 16,3% do PIB no terceiro trimestre do ano, são marcas negativas de 2023, sinalizações comprometedoras para o ano que se inicia.
Se não houver uma recuperação relevante da taxa de investimentos neste ano que se inicia, aumentando a capacidade de produção, pode haver uma desaceleração da economia ou ocorrer novas pressões inflacionárias de demanda. A continuação provável da redução da taxa de juros e a confiança dos agentes econômicos devem estimular a elevação da taxa de investimentos e, com isso, consolidar o crescimento com estabilidade da economia brasileira. E o contexto internacional não deve atrapalhar o desempenho da economia brasileira. A grande ameaça à dinâmica da economia em 2024 é fiscal. Por insistência de Haddad, o orçamento da União confirmou a meta de déficit primário zero. Como o ministro da Fazenda não está disposto a uma redução dos gastos, considerando o volume de despesas obrigatórias e a dura resistência do presidente da República e do seu partido, terá que fazer um esforço excepcional (e nada fácil) para a elevação da receita. Não vai ser um ano fácil, ninguém acredita mesmo que o governo consiga zerar o déficit primário, mas qualquer descontrole poderá comprometer os avanços alcançados no ano que acabou.
Por isso, os brasileiros podem ter um otimismo desconfiado em relação a este ano de 2024. Podemos continuar numa rota de estabilidade com modesto crescimento, nada espetacular porque o Brasil está travado por estrangulamentos estruturais que nos impede de escapar da chamada "armadilha da renda média". O principal estrangulamento é a baixa produtividade da economia, que está quase estagnada desde a década de 80. No ranking mundial de produtividade geral, o Brasil é o 57º, num total de 64 nações estudadas (IMD-Institut for Management Development), caindo para o 61º lugar quando se trata da produtividade da mão de obra. São necessários quatro trabalhadores brasileiros para produzir o mesmo que um americano, e dois brasileiros para gerar a mesma riqueza de um sul-coreano, que reflete a baixa qualificação profissional dos brasileiros, além da obsolescência tecnológica de várias atividades econômicas. Não dá para esperar um dinamismo consistente da economia brasileira no futuro - com elevação da renda, redução da pobreza e das desigualdades sociais - sem um aumento substantivo da produtividade do trabalho (que, pelo menos, um brasileiro produza tanta riqueza quanto um coreano). Um tal salto da produtividade da mão obra brasileira depende, antes de tudo, de um arrojado e ambicioso empreendimento na educação, em todos os níveis, na formação profissional dos trabalhadores (que depende da escolaridade) e na promoção da inovação nas empresas. Salto que será cada vez mais importante nas próximas décadas, quando vai se encerrando o bônus demográfico - continuada expansão da População em Idade Ativa - disponibilidade de mão de obra que forma um "exército industrial de reserva" de baixa qualidade, para usar a expressão da Karl Marx. A pior notícia é que já estamos muito atrasados.
Sérgio C. Buarque, economista