Tios e sobrinho(a)s
Localizado num terreno da Prefeitura, o MEMORIAL está sob a responsabilidade financeira e administrativa do Governo do Estado que, injustificadamente, não previu no orçamento de 2024 o seu funcionamento, sua sobrevivência institucional.

No início dos anos 80, alguém afixou à porta do Mestrado em História da UFPE uma famosa frase de Hegel (Filosofia da História) que dizia: "Um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la". Confesso que não apenas acreditei, como também repeti essa frase inúmeras vezes em minhas aulas. Não repito mais. Não acredito mais, e posso explicar a razão de minha descrença.
A frase supõe uma Filosofia da História, quer dizer, uma narrativa sobre o SENTIDO da história nas duas acepções - direção e significado- e, em seguida, deposita no conhecimento (na consciência) a garantia de que "conscientizados" da crueldade ou da alienação, não a praticaremos mais! Tolíssima ilusão "progressista": não nos cansamos de repetir de forma cada vez mais sofisticada, a crueldade, a morte, a dor, a humilhação, o extermínio… A única 'lição' que talvez possamos extrair dessa frase é a de que as gerações futuras não disporão da desculpa de que "não sabiam", de que "não foram advertidas". Apenas isso!
Marx pensava a ideologia como um corolário social de uma frase do Cristo supliciado -"Eles não sabem o que fazem!"-, no sentido de que agimos e pensamos sem ter consciência das injunções sociais (de classe) das nossas ações e ideias (posição dita "Materialista"). Mas parece que, hoje, não dispomos mais de tais desculpas: nós sabemos o que fazemos e continuamos a fazer. A função que certas instituições da memória cumprem, numa sociedade, é a de dizer "Isto aconteceu", "Isto foi possível", apesar de todas as nossas crenças humanistas num "progresso do espírito".
É essa função que cumpre, entre nós, o MEMORIAL DA DEMOCRACIA, situado onde funcionou o M.C.P. (Sítio Trindade). Localizado num terreno da Prefeitura, o MEMORIAL está sob a responsabilidade financeira e administrativa do Governo do Estado que, injustificadamente, não previu no orçamento de 2024 o seu funcionamento, sua sobrevivência institucional.
Será que Dona Raquel "esqueceu" daquela "história", num gesto que Hegel interpretaria como prenúncio de sua repetição? Ou será simples descaso com o sacrifício que homens e mulheres realizaram para que a Democracia não sucumbisse definitivamente entre nós? Não sei. Mas sei qual o papel que o MEMORIAL DA DEMOCRACIA vem exercendo entre nós: são mais de 5.000 visitantes, atendendo a um público que vai do ensino básico ao superior; a participação na Semana de Ciência e Tecnologia; nos projetos de Extensão Espaços da Memória da Resistência Democrática (UNICAP); a distribuição gratuita de material didático entre professores, alunos e pesquisadores; a criação do Cineclube Memorial com 8 documentários…, segundo me informam os professores Socorro Ferraz (ex-Comissão da Verdade Dom Hélder Câmara) e Manoel Morais (Cátedra UNESCO/UNICAP de Direitos Humanos).
É mais do que um lugar de "memória", para onde se vai lembrar ou conhecer passagens e personagens de nossa história, passagens que mostram o que somos capazes de fazer uns com os outros quando suprimimos a Democracia e negligenciamos os Direitos Humanos, que os movimentos identitários e comunitaristas criticam, por seu pecado "universalista", mas que, sem eles, produzimos guetificação cultural e social e, no limite, o fim de toda "ação comunicativa", fundamento filosófico e linguístico da democracia.
Assim um espectro ronda nossa época: o espectro da ignorância, mais do que o do esquecimento. E para mostrar que, às vezes, o sacrifício de uns não encontra o reconhecimento histórico de outros, basta lembrar que Dona Raquel é sobrinha de Fernando Lyra, um baluarte da resistência democrática, ex-Ministro da Justiça e que elaborou os instrumentos institucionais da Defesa do Estado Democrático de Direito, na redemocratização.
Marx, que cito uma última vez, dizia ironicamente que a história se repete duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa; a primeira com o tio (Napoleão Bonaparte), a segunda com o sobrinho (Napoleão III). Entre nós, pernambucanos, a história também se repete duas vezes: a primeira como sacrifício político, com o tio Fernando; a segunda como negligência moral, com a sobrinha Raquel!
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e visitante da UFRPE