Recife, amor e justiça restaurativa
Que o nosso amor por Recife seja a liga enquanto trilhamos esse novo caminho de construção de um movimento restaurativo local... que construamos uma cidade restaurativa!

No último dia 18, na Câmara de Vereadores do Recife, foi realizada Audiência Pública sobre a escolha dos representantes da sociedade civil para atuar no Comitê Gestor da Política Municipal de Cultura de Paz e Justiça Restaurativa, política instituída pelo art. 20 da Lei Municipal n. 18.850/2021. Na ocasião, representei a Universidade Católica de Pernambuco, uma das treze instituições eleitas para o referido Comitê, e fui convidada a falar sobre a justiça restaurativa.
Como pesquiso no campo da justiça restaurativa há quase vinte anos, imagino que a expectativa tenha sido de uma fala acadêmico-científica. Mas, poucos dias antes, eu havia assistido ao novo documentário de Kleber Mendonça Filho - "Retratos Fantasmas" - e não consegui senão falar como recifense e com o coração. Ando emocionada, ainda digerindo o tanto que o documentário me provocou. Lembrei, enquanto o assistia, que eu amo o Recife. Eu amo a nossa cidade, o nosso sotaque, o nosso bairrismo... eu amo a nossa capacidade de ser carnaval, de ser leve, apesar dos tantos obstáculos que nos pesam... e isso tem tudo a ver com o momento que vivemos na aludida audiência pública.
A existência de uma Política Municipal de Cultura de Paz e Justiça Restaurativa, por si só, é motivo para celebrarmos. A criação de um Comitê Gestor dessa política, plural como o que foi montado, com a participação das mais variadas instituições - e, portanto, compreensões - da sociedade civil, multiplica os motivos para comemorar. Por quê? Porque a justiça restaurativa é muito mais do que era quando eu a "conheci". A conheci como uma forma diferente de reagir ao crime. Ao invés do percurso de um processo penal tradicional, terminando em prisão, eu aprendi que podemos colocar a vítima e o ofensor cara-a-cara, abrir o círculo de diálogo para incluir a participação da família, dos amigos, e de moradores da comunidade local afetada pelo crime que aconteceu. E todos, juntos, decidem um plano de reparação dos danos provocados.
As pesquisas empíricas conduzidas mundo afora apontam para uma série de benefícios dos processos restaurativos (em contraste ao processo penal convencional): o índice de satisfação das vítimas que participam de encontros restaurativos é alto e tem sido consistente em todos as localidades, culturas e independentemente da gravidade do crime; os processos restaurativos tendem a reduzir os níveis de estresse pós-traumático das vítimas; ao invés de receber passivamente uma punição, o infrator é chamado a assumir as consequências de suas ações, reparando os danos provocados à vítima; esse reconhecimento do crime como algo que provoca danos gera mais oportunidades para a reparação (inclusive emocionais) desses danos; etc.
Mas o uso das práticas de justiça restaurativa se expandiu e alcançou outros lugares, e outras matérias e pessoas. Em escolas, por exemplo, tem ajudado a criar um ambiente escolar melhor; tem reduzido as taxas de suspensão e expulsão, e a disparidade racial que existe nessas suspensões e expulsões; tem ajudado a desenvolver habilidades socioemocionais dos alunos. Já no ambiente de trabalho, mesmo em grandes corporações ou dentro de instituições públicas, a justiça restaurativa tem ajudado a criar ambientes propícios para construir e sustentar relacionamentos; tem aberto espaços para a criatividade na forma de liderar e ser liderado; tem oportunizado a reparação de danos advindos de comportamentos prejudiciais.
Hoje, a "campanha" restaurativa vai para muito além do sistema de justiça criminal. E esse movimento de ampliação me parece óbvio: para transformar qualquer sistema, precisamos olhar e agir para além dos muros desse mesmo sistema. Não surpreende, pois, que a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU inclui a justiça restaurativa por reconhecer o potencial que ela tem de contribuir para o alcance da chamada Meta 16, de "promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis". E, com a construção deste Comitê Gestor, a Prefeitura do Recife mostra compreender a importância de tudo isso... Que o nosso amor por Recife seja a liga enquanto trilhamos esse novo caminho de construção de um movimento restaurativo local... que construamos uma cidade restaurativa!
Fernanda Fonseca Rosenblatt, professora da UNICAP e do International Institute for Restorative Practices