OPINIÃO

Recife, amor e justiça restaurativa

Que o nosso amor por Recife seja a liga enquanto trilhamos esse novo caminho de construção de um movimento restaurativo local... que construamos uma cidade restaurativa!

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FERNANDA FONSECA ROSENBLATT

Publicado em 23/09/2023 às 0:00 | Atualizado em 23/09/2023 às 8:43
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No último dia 18, na Câmara de Vereadores do Recife, foi realizada Audiência Pública sobre a escolha dos representantes da sociedade civil para atuar no Comitê Gestor da Política Municipal de Cultura de Paz e Justiça Restaurativa, política instituída pelo art. 20 da Lei Municipal n. 18.850/2021. Na ocasião, representei a Universidade Católica de Pernambuco, uma das treze instituições eleitas para o referido Comitê, e fui convidada a falar sobre a justiça restaurativa.

Como pesquiso no campo da justiça restaurativa há quase vinte anos, imagino que a expectativa tenha sido de uma fala acadêmico-científica. Mas, poucos dias antes, eu havia assistido ao novo documentário de Kleber Mendonça Filho - "Retratos Fantasmas" - e não consegui senão falar como recifense e com o coração. Ando emocionada, ainda digerindo o tanto que o documentário me provocou. Lembrei, enquanto o assistia, que eu amo o Recife. Eu amo a nossa cidade, o nosso sotaque, o nosso bairrismo... eu amo a nossa capacidade de ser carnaval, de ser leve, apesar dos tantos obstáculos que nos pesam... e isso tem tudo a ver com o momento que vivemos na aludida audiência pública.

A existência de uma Política Municipal de Cultura de Paz e Justiça Restaurativa, por si só, é motivo para celebrarmos. A criação de um Comitê Gestor dessa política, plural como o que foi montado, com a participação das mais variadas instituições - e, portanto, compreensões - da sociedade civil, multiplica os motivos para comemorar. Por quê? Porque a justiça restaurativa é muito mais do que era quando eu a "conheci". A conheci como uma forma diferente de reagir ao crime. Ao invés do percurso de um processo penal tradicional, terminando em prisão, eu aprendi que podemos colocar a vítima e o ofensor cara-a-cara, abrir o círculo de diálogo para incluir a participação da família, dos amigos, e de moradores da comunidade local afetada pelo crime que aconteceu. E todos, juntos, decidem um plano de reparação dos danos provocados.

As pesquisas empíricas conduzidas mundo afora apontam para uma série de benefícios dos processos restaurativos (em contraste ao processo penal convencional): o índice de satisfação das vítimas que participam de encontros restaurativos é alto e tem sido consistente em todos as localidades, culturas e independentemente da gravidade do crime; os processos restaurativos tendem a reduzir os níveis de estresse pós-traumático das vítimas; ao invés de receber passivamente uma punição, o infrator é chamado a assumir as consequências de suas ações, reparando os danos provocados à vítima; esse reconhecimento do crime como algo que provoca danos gera mais oportunidades para a reparação (inclusive emocionais) desses danos; etc.

Mas o uso das práticas de justiça restaurativa se expandiu e alcançou outros lugares, e outras matérias e pessoas. Em escolas, por exemplo, tem ajudado a criar um ambiente escolar melhor; tem reduzido as taxas de suspensão e expulsão, e a disparidade racial que existe nessas suspensões e expulsões; tem ajudado a desenvolver habilidades socioemocionais dos alunos. Já no ambiente de trabalho, mesmo em grandes corporações ou dentro de instituições públicas, a justiça restaurativa tem ajudado a criar ambientes propícios para construir e sustentar relacionamentos; tem aberto espaços para a criatividade na forma de liderar e ser liderado; tem oportunizado a reparação de danos advindos de comportamentos prejudiciais.

Hoje, a "campanha" restaurativa vai para muito além do sistema de justiça criminal. E esse movimento de ampliação me parece óbvio: para transformar qualquer sistema, precisamos olhar e agir para além dos muros desse mesmo sistema. Não surpreende, pois, que a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU inclui a justiça restaurativa por reconhecer o potencial que ela tem de contribuir para o alcance da chamada Meta 16, de "promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis". E, com a construção deste Comitê Gestor, a Prefeitura do Recife mostra compreender a importância de tudo isso... Que o nosso amor por Recife seja a liga enquanto trilhamos esse novo caminho de construção de um movimento restaurativo local... que construamos uma cidade restaurativa!

Fernanda Fonseca Rosenblatt, professora da UNICAP e do International Institute for Restorative Practices

 

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