OPINIÃO

Ideologia e sabão-de-coco (ou é com um NEM que se combate um 'NEM, NEM')

De qualquer forma, sabem o quê os defensores do NEM dirão deste meu artigo? - "Um típico produto do viés ideológico de esquerda!" E sabem o que eu direi deles? -Não tô NEM aí"! Flávio Brayner

FLÁVIO BRAYNER
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FLÁVIO BRAYNER
Publicado em 18/04/2023 às 0:00 | Atualizado em 18/04/2023 às 12:24
Bruno Santos
Protesto de estudantes contra a reforma do ensino médio - FOTO: Bruno Santos

"Viés ideológico", "ranço ideológico", "credo ideológico", "dogmatismo ideológico" ... são alguns dos termos utilizados em diversos discursos e publicações dos defensores do chamado NOVO ENSINO MÉDIO (NEM): tais defensores (intransigentes ou com reservas) são ou estiveram ligados aos grandes grupos empresariais da educação; já os acusados - os movidos por "ranços ideológicos" - são... "de esquerda". Neste grupo encontram-se 40 entidades e associações de pesquisa e de representação profissional de educadores nacionais que publicaram recentemente um documento onde mostram dez pontos importantes que fundamentam sua severa oposição ao NEM. Aliás, os defensores da reforma são os mesmos que apontam o desastre da "Geração nem-nem" ("nem trabalham, nem estudam"): nada como um NEM para combater outro!

Sem nenhuma presunção academicista, gostaria de dizer aos, digamos, "não-ideológicos", que eles estão usando um conceito que, com toda evidência, não têm a menor ideia do que se trata: ideologia não é partidarismo mental que engessaria nossa relação com a realidade e que, "fora" dela, haveria grupos que sabem sobre ela -a realidade- o que os "ideologizados" ignoram! Esta curiosa posição, diga-se, é tipicamente... ideológica!

O termo "Ideologia" vem de Destutt de Tracy (1754-1836) e, para ele, significava "a ciência da formação de nossas ideias e das operações de nossa inteligência". Influenciado pelos empiristas ingleses, de Tracy aceitava a noção de que nossas ideias (ao contrário de Descartes) vinham de nossos sentidos (Diderot discutiu a questão da relação entre sentidos e conhecimento na célebre "Carta sobre os cegos"). Mais tarde, Marx modificou completamente o conceito, mostrando que em toda sociedade (de classes) a "ideologia dominante" (quer dizer o conjunto dos valores com os quais vemos, julgamos e agimos no mundo) nos é imposto pela "classe dominante". Para Marx, a ideologia (como uma máquina fotográfica analógica daquela época) invertia a realidade, escondendo interesses de classe: tomava o particular por universal, ou o que era da Terra como vindo do Céu: ideologia era "falsa consciência"! O filósofo húngaro Gÿorg Lukàcs achava que o buraco era mais embaixo, argumentando que a "falsa consciência" não é manipulação da elite burguesa para enganar e oprimir o proletariado, mas o resultado da vida e do trabalho "alienados", especialmente sob o capitalismo (aliás, o capitalismo, para ele, com sua estrutura de classes tão visível, tornara a alienação, paradoxalmente, consciente!). Bem mais recentemente, o filósofo franco-argelino Louis Althusser (numa linhagem que descende de Gramsci, mas com viés estruturalista) ofereceu outra inflexão ao conceito, mostrando, entre outras, que ninguém pode escapar das injunções ideológicas: todos nascemos no interior de sistemas de valores e nossa "subjetividade", quer dizer, os predicados de que dispomos para definir nossas identidades, aquilo que nos faz "sujeitos", numa dupla acepção: como aquele que pratica ações livres e conscientes e aquele que está submetido, "assujeitado". Essas duas injunções são fornecidas pela ideologia e seus "aparelhos".

Mas pelo visto, os "ideológicos" são apenas um lado da equação (a "esquerdalha"!): o outro lado é tão politicamente inofensivo, tão neutro ideologicamente quanto uma barra de sabão-de-coco!

O que há de interessante - sociologicamente falando- nesse tipo de auto-representação ("minha visão é objetiva e baseada em conhecimentos verificáveis cientificamente") é que a mesma acusação de "viés ideológico" pode ser relançada contra ela: toda "objetividade" do real é sempre vista por alguém, por uma consciência (que é subjetiva e carregada de valores), ou não poderia ser sequer nomeada, verificada ou contestada, e esse "alguém", como disse, é sempre formado culturalmente no interior de ideologias, inclusive "científicas". Ou vocês acham que o desejo de apropriar a Natureza, conhecê-la e dominá-la (ciência e técnica) surgida no alvorecer da modernidade burguesa é algo a-ideológico? O interessante é como a "objetividade' dos defensores do NEM é invocada para esconder interesses (dos quais falarei em próximo artigo) empresariais, cuja "objetividade" -esta sim!- não pode ser revelada "à luz de conhecimentos verificáveis"!

De qualquer forma, sabem o quê os defensores do NEM dirão deste meu artigo? - "Um típico produto do viés ideológico de esquerda!" E sabem o que eu direi deles? -Não tô NEM aí"!

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE

 

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