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‘1984’ não é aqui, mas...

‘1984’, em contraste com "Revolução dos Bichos" (crítica ao stalinismo), é livro que nos traz elementos para uma crítica do mundo atual. Buscando não cansar o leitor, esquematizo o cenário traçado em ‘1984’

TARCISIO PATRICIO 		DE ARAUJO
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TARCISIO PATRICIO DE ARAUJO
Publicado em 28/03/2023 às 4:00 | Atualizado em 28/03/2023 às 8:18
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George Orwell, 1984. - FOTO: Reprodução.

Escrever é difícil. Regularmente, e com obrigação ditada por compromisso, bota difícil nisso. O prêmio envolve prazer e aprendizado, o que compensa aborrecimentos quando ocorrem deslizes tornados públicos e nada mais há a ser feito – além de uma ‘errata’. Entre os prazeres, vem a possibilidade de “diálogo”, como o que agora inicio, fazendo uma ‘puxada’ do artigo de Gustavo Krause, neste JC (‘1984 não é aqui’, 12/03/2023).

Li ‘1984’, de George Orwell, três vezes. Duas vezes em edições brasileiras – Companhia Editora Nacional – e uma vez a edição em Inglês da Penguin Books (1977). O que logo me levou a ‘Revolução dos Bichos’, a outra distopia de Orwell. O primeiro, romance sombrio. Inesquecível, sim. O segundo, uma grande sátira. Os dois foram muito saudados pela mídia internacional associada ao liberalismo, na disputa com o mundo socialista (principalmente, União Soviética e, depois de 1949, a China). Claro que as ditaduras apoiadas pelos EUA – incluídas no mundo “não-comunista” – eram detalhes deixados de lado, a respeito da “liberdade” praticada no mundo liberal. ‘1984’, em contraste com “Revolução dos Bichos” (crítica ao stalinismo), é livro que nos traz elementos para uma crítica do mundo atual. Buscando não cansar o leitor, esquematizo o cenário traçado em ‘1984’.

01. Eram três “superestados’: Oceânia, Eurásia e Lestásia. Houvera “a absorção da Europa pela Rússia e do Império Britânico pelos Estados Unidos”. EUA e Reino Unidos, localizados na Oceânia, que incluía “as Américas, as ilhas atlânticas” [inclusive as britânicas], “a Australásia e parte do sul da África”. A Rússia era parte da Eurásia, que compreendia “a totalidade da parte norte” da Europa e da Ásia. A China e as ilhas do Japão como parte da Lestásia, surgida depois de “mais de uma década de confusos conflitos armados”.

02. A Oceânia vivia em guerra com os outros dois superestados, embora a “verdade” sobre o inimigo da vez alternava Lestásia e Eurásia. Guerras e ameaças de irrupção do caos eram parte da vida. Espécie de equilíbrio pelo grande poder atômico de cada um. Os sistemas sociais e respectivas ideologias — Socing [Socialismo Inglês] na Oceânia, neobolchevismo na Eurásia e Adoração da Morte [ou Obliteração da Identidade] na Lestásia — “tinham o objetivo declarado de perpetuar a desliberdade e a inigualdade”. Adoração a um chefe semidivino era traço comum aos três.

03. Na Oceânia, em prédios públicos e nas ruas, se via em todo lugar um cartaz colorido com o rosto de um homem (45 anos de idade), “traços rústicos e atraentes”, e cujos olhos seguem a pessoa onde quer que esteja. “O Grande Irmão [Big Brother] Zela Por Ti”, berrava o cartaz. Além disso, a ‘Polícia do Pensamento’ controlava a todos, por meio da ‘teletela’, “uma placa oblonga de metal semelhante a um espelho fosco”, também instalada em todo lugar, da qual ninguém escapava. A teletela recebia e transmitia sons e imagens simultaneamente. Mas, ninguém sabia se e quando o equipamento estava ligado.

04. Estrutura de governo: Ministério da Verdade, Ministério da Paz, Ministério do Amor e Ministério da Fartura. Todos para tratar do contrário do expresso no nome. Os lemas do Ministério da Verdade eram: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força.

05. Todo dia cada cidadão exercitava os ‘Dois Minutos de Ódio’, em preparação para a ‘Semana do Ódio’. Era parte da estratégia de dominação das mentes. Precisava-se do inimigo, da ameaça representada pelo suposto movimento chamado Fraternidade, contrário ao sistema.

Tal cenário cinzento é pontuado pelo romance supostamente escondido entre Winston Smith (o herói anti-herói) e Júlia – inicialmente vista como da Polícia do Pensamento, um dos medos e tormentos dele. Amor subversivo. O primeiro contato foi via um suposto tropeço e a queda de Julia à frente de Winston, em um dos longos corredores do Ministério da Verdade.

Quando ele a socorre, ela consegue fazer escorregar à sua mão um aplainado quadradinho de papel dobrado. O incidente se deu frente a uma das teletelas. Daí até abrir o bilhete de Julia, na sua estação de trabalho, foi um angustiante contorcionismo para manter secreta a prova do crime. “Eu te amo” era o escrito. Romance, tragédia, prisão do casal, tortura, desaparecimento de Julia, lavagem cerebral e submissão se desenrolam, e Winston sucumbe. Sim, “... finalmente ele lograra a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão”.

Que semelhança o mundo atual teria frente a tão sombrio cenário? O formato é outro, mas alguns elementos são similares. As guerras “isoladas” – sem se chegar à Terceira Grande Guerra, que poderia ser a Final. O totalitarismo não morre: a Coréia do Norte de Kim Jong-un e sua filha de 10 anos, já sendo cevada para ser sucessora do pai; a Rússia de Putin, a completar 27 anos no poder; a Bielorússia de Lukashenko e sua cara de maus bofes; a China de Xi Jinping (rosto impassível, sem sinais de emoção); a Nicarágua de Daniel Ortega, o libertador fake, transmutado em ditador – autocracia perdoada por intelectuais anti-capitalistas e anti-EUA.

E o difuso totalitarismo do ódio, exercido nas redes sociais; aparentemente espontâneo, mas também induzido, como plena “liberdade de opinião”. E todo mundo vigiado por uma teletela cujo nível tecnológico avança rapidamente, o celular – indispensável e adorado objeto de desejo a serviço do consumo “salvador”. No dia a dia, ao invés dos Dois Minutos de Ódio, o ódio pleno, quotidiano, exercido à vontade – mas não por todos, felizmente.

Sim, ‘1984’ não é aqui, mas... Resistir, pois. Sempre.

Tarcisio Patricio, Doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado.

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