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Para que servem mesmo as palavras

Indaguei-me para que servem mesmo as palavras. Raciocinei que elas carregam o sinete da condição trágico-humana; buscam o sentido que sempre nos escapa; sutura as nossas feridas; geram realidades ilusórias e burlescas; alinhavam silêncios; altera significados

DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Publicado em 26/03/2023 às 4:00
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Torre de Belém é um dos pontos turísticos mais tradicionais de Lisboa. Local onde as palavras possuem significado diferentes dos daqui - FOTO: Pixabay

Li o artigo escrito por José Paulo Cavalcanti seguido dos comentários, no WhatsApp, de Giovanni Mastroianni registrando o caráter apimentado do texto do imortal e o fato de a sociedade lusa ser um tanto desbocada (grifo nosso).

Indaguei-me para que servem mesmo as palavras. Raciocinei que elas carregam o sinete da condição trágico-humana; buscam o sentido que sempre nos escapa; sutura as nossas feridas; geram realidades ilusórias e burlescas; alinhavam silêncios; altera significados; estabelecem conexões; ridicularizam o significado das coisas.

Palavras são apenas palavras geradas por nós para traduzir aquilo que realmente desejamos comunicar. O tempo se encarrega de purificar ou expurgar o grosseiro ou ultrajante. Afinal, o feio e o indecente estão em nossa cabeça. Caminhemos pelos exemplos.

No tempo em que eu residia em Lisboa, aceitei o convite para jantar na casa de uma senhora integrante, na época, da alta burocracia portuguesa. Estávamos nos petiscos, quando escutei a voz do filho pequeno da anfitriã: “Mãeee, me ajuda a limpar o rabo”. Meus preconceitos afloraram. Logo raciocinei: “Não é uma pessoa bem-nascida! ”. Acabei descobrindo que a palavra era de uso muitíssimo comum.

Dias depois conheci um juiz de Santa Catarina – hoje, ex-presidente do Tribunal de Justiça. Levou a esposa e filhos pequenos para residir em Lisboa, enquanto ele fazia o mestrado. O menor chegou da escola todo sujo e arranhado. Meu amigo perguntou o que havia sucedido e o garoto responde: “Nada não, pai! Foi um puto da minha classe que me empurrou do baloiço eu caí e deitei sangue”.

Passeava em Sintra. Aconselharam-me a provar um doce de nome “travesseiro”. Indaguei onde serviam a iguaria e minha acompanhante portuguesa responde: na “Periquita”. Disse-lhe que preferia chamar “Passarinha” porque a palavra “periquita" não tinha boa conotação em meu País. E ela responde: Não faça isso, amiga! passarinha, em Portugal, tem o mesmo significado de periquita no Brasil (vagina ou cona, derivado do latim clássico“cunnus”). E logo recordo a denúncia de Aloísio Mercadante: uma colega havia quebrado o decoro parlamentar – Ideli Salvatti - quando saiu “fantasiada de periquita no carnaval de floripa”.

Ingressei no Corte Inglês para comprar uma mala (bolsa no Brasil). Minha acompanhante sugeriu uma muito “gira” da grife “Bimba e Lola” ”Comentei que eu seria muito ridicularizada no Brasil caso andasse com uma mala daquela marca.

Dia de praia, multidão tomando banho nas águas geladas do Guincho. Uma sobrinha reclama: “tia, acho que comi algo que me fez mal”. Saiu correndo para encontrar um banheiro. Esbarra com um rapaz afável, bronzeado e com calção de banho: “Eu sou o banheiro (salva-vidas) Surpresa, ela balbucia: “eu estou nas últimas! Rápido, o salva-vidas indaga: Está se cagando? Ali tem uma retrete. A casa de banho está um pouco mais adiante.

Acordei cheia de alergia e telefonei para um amigo para obter o nome de um antialérgico. Entrei na farmácia e apresentei o papel com o nome do remédio. O atendente pergunta: “prefere pica? ” (injeção)
Mas há situações bem mais intricadas. Num palácio português duas conferências se realizavam: uma por um catedrático da Faculdade de Direito e outra por um docente de Cambridge.

No intervalo entre uma e outra, fui à casa de banho. Com meu déficit de atenção, ingressei no banheiro dos homens. Os dois conferencistas estavam em pé nos respectivos mictórios. Já sentada no auditório, narrei o fato ao amigo que me acompanhava. Com os olhos muito arregalados, ele indaga: “você viu o bregalho do professor?”

Deixando Portugal, recordo a minha neta de três anos que fala três idiomas e ainda mistura algumas palavras. Almoçava muito feliz deixando o macarrão e o feijão a transbordar da colher, sujando a mesa e o piso. A auxiliar indaga: “Alice, não quer que Cida encha a colher e dê a sua comidinha na boca? Ela olha irritada e fala: Arrêté!!! (vá embora, me deixe). A auxiliar retruca: “quem ensinou a você esse palavrão? Obviamente, a funcionária associou a palavra francesa à expressão “estou arretada”.

Enfim, é preciso libertar a mente dessa teia de fios invisíveis que lhe sugam a espontaneidade e permite que a xenofobia se instale. Afinal, a malícia e a sordidez só se alojam nos neurônios já arruinados.

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.

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