OPINIÃO

Crise carcerária (X) - Enquanto o tratamento ao preso for desumano, não será possível reduzir a criminalidade.

Naos termos da Lei de Execução Penal, o Estado tem a obrigação de oferecer ao preso o trabalho remunerado, assistência à saúde, educacional, social, religiosa e jurídica e, principalmente, local apropriado para uma acomodação digna, em celas limpas...

Adeildo Nunes
Cadastrado por
Adeildo Nunes
Publicado em 19/01/2023 às 0:00 | Atualizado em 19/01/2023 às 14:17
NE10
"O quadro carcerário brasileiro, como se viu nesses últimos 10 (dez) artigos publicados nesta página do JC, é deveras desolador e desumano"... - FOTO: NE10

O espaço físico hoje denominado de prisão (penitenciárias, colônias penais, centros de observação e cadeias públicas) sempre existiu. Cristo foi preso, torturado e condenado pelo povo à pena de morte (crucificação). Até o final da Revolução Francesa (1789), a prisão servia, apenas, para recolher pessoas que seriam posteriormente julgadas e, se condenadas, fatalmente a elas eram impostas as penas mais barbaramente cruéis possíveis, mormente a pena de morte, comumente pelo enforcamento, a forma mais usada naquele período nefasto. Aos domingos, para deleite da sociedade, geralmente depois da missa, as pessoas se reuniam nas praças públicas para assistirem à execução de pessoas condenadas, no mais das vezes escravos e pequenos desordeiros pobres.

Em relação às pessoas de classe nobre, desde aquela época, não existiam condenações, pois em troca do ouro ou de terras férteis, quase sempre o indulto lhes protegia, editado pelo Soberano. Do início da humanidade, até o final do século 18, lamentavelmente, imperavam em todos os recantos da terra as penas cruéis, ditadas pelo Soberano, com o apoio da sociedade, sem qualquer forma de averiguação e sem a observância da proporcionalidade entre o fato delituoso e a pena. Pobres e negros, portanto, eram as vítimas preferidas da nobreza patriarcal. Qualquer semelhança com os dias atuais, deve ser analisada por cada um de nós.

Um dos ideais da vitoriosa Revolução Francesa foi o combate às penas cruéis, já naquela época definida como desumana, mercê das lições do italiano Cesare Beccaria, que havia publicado a sua obra maior "dos delitos e das penas", que teve uma enorme influência nos destinos da Revolução e da própria humanidade. Finda a Revolução que mudou a história da humanidade, as penas cruéis passaram a ser substituídas, aos poucos, pela pena de prisão, outra ideia de Beccaria que passou a ser acatada principalmente pelos países europeus. Não obstante, países como Estados Unidos da América, China e outros tantos asiáticos, não aderiram de logo, pois a pena capital permaneceu sendo utilizada. Até hoje, os Estados Unidos (Texas e Flórida, principalmente) ainda executam condenados, embora em pequena escala. Houve época em que 48 dos 51 Estados Americanos executavam pessoas condenadas. Na atualidade, apenas sete deles têm legislação autorizando a pena capital, mas apenas três, efetivamente, ainda executam criminosos, em média, dez pessoas por ano. O que se sabe é que essas penas cruéis - inclusive nos Estados Unidos - aos poucos estão desaparecendo do cenário punitivo, embora alguns países ainda teimem em tirar a vida das pessoas, quando a perda da liberdade já uma severa punição.

A pena de prisão, no Brasil, só foi introduzida com a aprovação do Código Penal de 1830, elaborado por catedráticos em Direito de Coimbra, contando, também, com a participação de estudantes da Faculdade de Direito do Recife e do Largo de São Francisco, criadas em 1827. Embora influenciado pelas conquistas da Revolução Francesa (liberdade, fraternidade e igualdade), o Código de 1832 pecava demasiadamente no tocante à permanência das penas cruéis, principalmente em relação ao homicídio qualificado, latrocínio e crimes contra a Monarquia. Em 1890 é aprovado um novo Código Penal, pela primeira vez estabelecendo a necessidade de observância do princípio da anterioridade, segundo o qual "Ninguém poderá ser punido por facto que não tenha sido anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não estejam previamente estabelecidas". Outros avanços podem ser citados, como o fim das penas cruéis e a pena de prisão em sua substituição. O Código Penal de 1940, ainda hoje em vigor, embora com enormes alterações legislativas, pela primeira vez na história brasileira assegurou direitos aos presos, embora esses direitos e também seus deveres só viessem a ser definitivamente contemplados pela Lei de Execução Penal de 1984.

Hoje, sabe-se, tanto o preso provisório (aquele não condenado definitivamente), como o já considerado criminoso, são sujeitos de direitos e de obrigações. Dentro do ambiente prisional, entretanto, as suas obrigações são deveras exigidas, às vezes até se exigindo mais do que o previsto em lei, enquanto os seus direitos são relegados a segundo plano. Nos termos da Lei de Execução Penal, o Estado tem a obrigação de oferecer ao preso o trabalho remunerado, assistência à saúde, educacional, social, religiosa e jurídica e, principalmente, local apropriado para uma acomodação digna, em celas limpas, com utensílios que preservem a higienização necessária. São poucas as unidades prisionais brasileiras que cumprem a Lei de Execução Penal.

O quadro carcerário brasileiro, como se viu nesses últimos 10 (dez) artigos publicados nesta página do JC, é deveras desolador e desumano, pois enquanto a população carcerária aumenta acentuadamente, é comum a manutenção do número de vagas, sem contar que os direitos do preso, previstos na Constituição Federal e nas leis federais e estaduais são vilipendiados, contribuindo, dessa forma, para um aumento da reincidência criminal, sem que a sociedade perceba e cobre das autoridades o fiel cumprimento da Constituição e das leis. Enquanto esse tratamento perverso e desumano persistir, não é possível consagrar a dignidade humana e nem tampouco uma redução na criminalidade.

Adeildo Nunes, doutor e mestre em Direito, juiz de Direito aposentado, professor, advogado, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Jurídicas (IBCJUS) e autor de livros jurídicos

 

Comentários

Últimas notícias