OPINIÃO

A estética do cangaço

Todas aquelas lutas hoje são coisas de museus, públicos ou particulares. As cabeças altivas e ativas foram cortadas e exibidas num museu itinerante e macabro

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MARIO HELIO

Publicado em 16/03/2022 às 16:19 | Atualizado em 16/03/2022 às 16:21
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Pode um assassino escrever um belo poema? À pergunta Otto Maria Carpeaux (1900-19778) respondeu positivamente com um nome: François Villon (1431-1463). Tiveram os cangaceiros das primeiras décadas do século passado uma estética? A resposta – longa, erudita e povoada de imagens – está no livro Estrelas de couro, de Frederico Pernambucano de Mello.


A quarta edição, que acaba de sair pela Cepe, é uma joia editorial. A melhor de todas as que foram feitas desse trabalho. Em pouco mais de trezentas páginas, a metáfora que dá título à obra se enriquece no rigor da análise, somando história e arte. Mais: sociologia, antropologia e biografia parecem ter deixado de lado suas diferenças para iluminar os tempos de um Brasil tão rural quanto ainda imbuído de noções severas de honra, vingança e coragem. O que termina por atestar algo óbvio antes, mas não agora: toda estética embute uma ética, ou vice-versa.


“Lampião é um homem moço e forte aparentando seus 27 anos. Caboclo moreno, estatura regular, é franzino, parecendo muito ágil, olhar perscrutador, vista sempre baixa, cabelos estirados e pretos, caídos sobre os olhos, cabeleira inteira, pele lisa, afigurando um tipo de beduíno com um sinal na face direita, uma vista perdida, uma pasta azulada cobrindo quase todo o globo ocular. Conversando, está sempre em movimento, ora sobre uma perna, ora sobre outra. Usa óculos pretos com aros de ouro. Traja calça e blusa de brim, uniforme muito bem acabado, grande lenço de seda ao pescoço preso por um anel de ouro, sapatos de lã e meias, relógio e corrente de ouro com uma libra esterlina pendente. Conduz nos dedos dois anéis, sendo um de brilhante".


Essa descrição de Lampião (1898-1938) – o mais famoso dos cangaceiros - foi publicada no jornal O Ceará em 1926 – e reproduzida noutros veículos. Dá um pouco a medida do gosto pelo bem vestir e adornar-se do bandoleiro que Estrelas de couro situa, explica, esmiúça.
O livro integra um conjunto com outros, do mesmo autor, de que Guerreiros do Sol é o “clássico” e fonte obrigatória no gênero. Na verdade, uma grande parte dos brasileiros aprendeu do cangaço nos filmes e nos folhetos de cordel. Os mais exigentes e ciosos da segurança das informações e interpretações, encontra tudo isso e mais nos escritos de Frederico Pernambucano de Mello. Ele é dono de um conhecimento tão sólido sobre o tema quanto a coleção pessoal que, numa seleção criteriosa de imagens, serve para ilustrar Estrelas de couro.


A estesia buscada e encontrada pelo autor traz implícita (como o ‘ouro’ no ‘couro’) uma série de questões insertas e extraídas do seco e do agreste. Ethos da alma áspera de homens e mulheres que parecem repetir aquilo que, com grande agudeza, foi mostrado por Simone Weil: “Esses homens armados atuam com dureza e tresloucadamente. Sua arma se funde num inimigo desarmado que está a seus pés; triunfam sobre o moribundo descrevendo-lhe os ultrajes que sofrerá seu corpo".
Esse trecho citado refere-se não a Lampião, mas a Aquiles. Sim, o célebre personagem de Homero. Que, segundo a mesma autora, “degola doze adolescentes troianos sobre a fogueira de Pátroclo com tanta naturalidade como nós cortamos flores para uma tumba”.


É muito mais fácil extrair que introduzir beleza em meio ao horror, porque o belo é sempre uma construção do pensamento sensível. No caso de uma geral estética no crime (não do crime, de que bem tratou Thomas de Quincey) a rusticidade pode evitar o kitsch quase natural no “gosto, mau gosto, desgosto e agonia” presente no cotidiano. Sem doçuras nem blandícies, o bandoleiro se esmera na arte de perfurar corpos e torná-los inertes. Como se repetissem Arquíloco: “eu tenho uma grande arte: eu firo duramente aqueles que me ferem”.


O olhar presente em Estrelas de couro é, ao mesmo tempo, distanciado e aproximado. Como se emulasse na construção do seu objeto a paradoxal frieza da arma de fogo e o calor da luta de punhais e facas. A faca que, nos versos de João Cabral de Melo Neto, afiançou-se até em “escola”, e teve uma espécie de Toledo em Pernambuco: Pasmado.


Com erudição exibida em elegância a cada página, Frederico Pernambucano de Mello captura o “Omne tulit punctum, qui miscuit utile dulci”. A expressão do poeta Horácio sintetizando que “obtém um consenso unânime quem conseguiu integrar o doce e o útil”, ou o útil e agradável. Algo que também tentaram os personagens do seu livro, com estilo. Vale lembrar que estilo e estilete são da mesma confraria. Leia-se este parágrafo da página 150:


“O modo de condução da arma tinha estilo que não variava cingindo orgulhosamente as cartucheiras de cintura em diagonal, sobre o abdome, às vistas de todos, aço da melhor qualidade europeia ou nativa, encimado por cabo de feitio integralmente sertanejo, à base de liga de prata lavrada, marfim, osso ou chifre de boi e, não raro, alianças de ouro tomadas ao inimigo e incrustadas em gesto de bizarria, materiais comuns às bainhas, as mais modestas sendo feitas de couro não menos ornamentado, não custa repetir”.


Todas aquelas lutas hoje são coisas de museus, públicos ou particulares. As cabeças altivas e ativas foram cortadas e exibidas num museu itinerante e macabro. Aliás, muito bem descritos por Aurelio Buarque de Holanda, numa crônica. A química usou-se para amainar o insuportável do horror que cheirado é sempre pior do que quando visto. Tempos de uma visão de mundo à maneira de Lombroso/Nina Rodrigues. Mas um mundo ainda empedernidamente medieval, como nestes versos de François Villon que falam de/por todos nós, na ótima tradução de Augusto de Campos:
“A chuva nos lavou e nos desfez/ E o sol nos fez ·negros e ressecados,/ Corvos furaram nossos olhos e eis-/ Nos de pelos e cílios despojados,/ Paralíticos, nunca mais parados,/ Pra cá, pra lá, como o vento varia,/ Ao seu talante, sem cessar, levados,/ Mais bicados do que um dedal. A vós/ Não ofertamos nossa confraria,/ Mas suplicai a Deus por todos nós.”

Mario Helio, diretor de Memória , Educação, Cultura e Arte da Fundação Joaquim Nabuco

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