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João Humberto Martorelli: o mal é Bolsonaro, mas será ele o único flagelo da sociedade brasileira?

"O que nos fez chegar até aqui é muito mais sério do que a sociopatia, a perversidade, a incapacidade, a incompetência, a estultice, o desvario, a corrupção, a estupidez desse mau elemento". Leia o artigo de João Humberto Martorelli

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JOÃO HUMBERTO MARTORELLI

Publicado em 30/12/2021 às 6:06
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Que 2022 nos livre do mal, amém! O mal é Bolsonaro, mas será ele o único flagelo da sociedade brasileira? O que nos fez chegar até aqui é muito mais sério do que a sociopatia, a perversidade, a incapacidade, a incompetência, a estultice, o desvario, a corrupção, a estupidez desse mau elemento. Antes da ditadura, florescia uma classe política que, entre os que roubavam e faziam, como Ademar de Barros, que popularizou o mantra depois malufista, e os loucos, como Jânio, existiam os idealistas, como Juscelino.

A ditadura varreu do mapa lideranças capazes, porque os idealistas se dedicaram a combatê-la e ao fim único de restauração da ordem democrática. Em 1985, e principalmente desde a Constituição de 1988, apesar dos grandes avanços, resgatamos os que roubam e os loucos. Os idealistas se calaram, ou não souberam fazer a gestão da coisa pública, proliferando os exemplos: Brizola, Arraes, Simon.

Aqui e acolá, pontificando as gestões de Jarbas em Pernambuco, é certo, administraram competentemente para o povo, mas se tornaram exceções. No geral, a ditadura aniquilou a classe política, assim entendido o conjunto de administradores públicos voltados para o bem do povo, que tem sido ator marginal na democracia. Consolidou-se a característica principal da formação da sociedade brasileira, o patrimonialismo: o escambo, a troca de favores, o liberalismo de Estado, as subvenções, a doutrina das concessões, dos monopólios, das grandes corporações entrelaçadas com o estamento e a burocracia, a venda de cargos públicos, a partilha de vantagens, o carreirismo na função pública, não apenas na política parlamentar, mas nas repartições, e até no Judiciário.

Os homens públicos, para os cargos eleitoralmente preenchíveis, são designados a partir de suas ligações pessoais e econômicas com os grandes grupos empresariais e com os chefes políticos locais, enquanto os funcionários que deveriam servir ao povo são indicados de cima para baixo, por efeito de uma análise curricular deteriorada pela cobiça do salário e das rachadinhas. O Supremo Tribunal Federal, guardião do regime, da República, hoje, mais do que nunca, sobretudo por ter sido conivente com a permanência desse lunático no poder, reflete as palavras de Rui: Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde.

Em 2022, com tantas imperfeições, nos livraremos do mal Bolsonaro, mas não sei se conquistaremos uma sociedade mais justa e consciente. Faoro nos define muito bem: O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto do ar, a túnica rígida do passado inexaurível pesado, sufocante.

O povo oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política (ineficazes), a nacionalização do poder, mais preocupado com os novos senhores. A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou. Que 2022 nos livre do mal, e nos permita iniciar um projeto de sociedade. São meus votos, leitor.

João Humberto Martorelli, advogado

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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