O mito popular do avestruz
"O certo é que não dá para ser a vida inteira avestruz, pular o morto estendido na sala, fingir que o cadáver não está ali. Isto não é técnica para se viver melhor. À cidadania-avestruz, é chegada a hora de conscientizar-se". Leia o texto de Gustavo Henrique Brito Alves Freire

O leitor deve conhecer o mito popular de que o avestruz enfia a cabeça no chão quando pressente perigo, como mecanismo de autoproteção. Na verdade, não é nada disso. A ave encosta o pescoço e a cabeça no chão, mas não a enterra em um buraco. Assim, escuta melhor a aproximação do inimigo. Ao mesmo tempo, cria camuflagem, já que deixa à mostra apenas a parte do corpo coberta de penas, o que, de longe, pode parecer um arbusto para o predador.
Mutatis mutandis, quanto ao homem, reconhece-se o mesmo fenômeno no comportamento de quem, para fugir da realidade ou idealizar uma, aprisiona-se em um cubículo hermético de alienação. Fala-se, inclusive, no avestruz político, que é aquele que passivamente espera que, diante de males como a corrupção, alguém tome uma atitude que não ele.
Segundo, não à toa, foi constatado pelo The Economist faz uma década, o Brasil não conseguiu construir uma base sólida de cidadania. Somos uma democracia falha nos quesitos da participação e da cultura políticas. Toleramos o pecado e o pecador. Somos dóceis com os maus agentes públicos. Somos, nessa acepção, enfim, todos avestruzes.
E o que dizer de quem defende o voto nulo como solução mágica que obrigaria os políticos a repensar suas práticas? E da própria situação da pandemia da COVID-19 e o negacionismo frente a ela? E do discurso presidencial na ONU a reafirmar a defesa da cloroquina no tratamento precoce da doença e a responsabilização de Prefeitos e Governadores pela crise econômica ao terem decretado lockdowns sem os quais os números de mortos seriam infinitamente maiores? E, no mesmo discurso, a imagem irreal relatada de que as manifestações de rua do 7 de setembro foram uma demonstração de respeito inquebrantável à Constituição de 88 e à democracia?
O certo é que não dá para ser a vida inteira avestruz, pular o morto estendido na sala, fingir que o cadáver não está ali. Isto não é técnica para se viver melhor. À cidadania-avestruz, é chegada a hora de conscientizar-se. Ou então, como disse certa feita Ivan Lessa, "o último a sair apaga a luz do aeroporto".
Gustavo Henrique Brito Alves Freire, advogado
AIP, considerada uma das mais importantes associações de imprensa do Brasil