Sobre o amigo que eu não consegui salvar
"Sinto uma falta cotidiana dele, especialmente numa época tão ruim como esta que estamos vivendo". Leia o artigo de Flávio Brayner

Meu grande amigo Fernando Mota, ex-professor de Sociologia da UFPE, tirou a própria vida sem se despedir de mim há exatos quatro anos. Na véspera de seu suicídio, em 2017, falamos longamente ao telefone. Ele não chegou a falar de suicídio, mas este era um tema ao qual ele voltava sempre e eu evocava uma carta de Gerson Scholem para Walter Benjamin, em que o primeiro dizia que o grande amigo prometia se suicidar desde o fim da Primeira Guerra, chegara a Segunda e... nada! Bom, Benjamin finalmente suicidou-se, em 1940, na fronteira entre a França e a Espanha (visitei seu "túmulo" - vazio!- em Port Bou). Fernando também suicidou-se, numa terça-feira de Julho.
É inquietante como depois de uma tragédia como esta, ficamos nos perguntando, inicialmente, se poderíamos tê-lo salvo, se havia sinais de pedido de socorro, se fomos negligentes ou indiferentes ao seu sofrimento... O problema é que ele desaparece e nos deixa, não apenas com uma inconsolável saudade, mas, sobretudo, com uma interrogação: "Por que"? Fiz repetidamente esta pergunta a mim mesmo e aos seus mais próximos amigos e cada um me ofereceu uma resposta diferente, todas insatisfatórias, todas injustificáveis, todas incompletas. O único que poderia responder se foi, e mesmo que estivesse aqui, se retornasse dos mortos, não sei se seria capaz de me oferecer uma tão aceitável justificativa de seu suicídio que, eu mesmo, terminaria por compreendê-la e aceitá-la!
Sinto uma falta cotidiana dele, especialmente numa época tão ruim como esta que estamos vivendo. Falávamo-nos toda quinta feira à noite e ficávamos longo tempo ao telefone, passando a limpo nosso tempo, os livros que andávamos lendo, os autores que amávamos, a degradação intelectual e espiritual da universidade, as músicas que ouvíamos, os artigos que estávamos escrevendo... Nele estavam reunidos o humor fino, elegante e cáustico; a erudição literária; o pessimismo de quem sabe que é o mundo que é péssimo; a melancolia de saber que todas as ilusões da juventude (que nele não duraram muito tempo. Em todo caso, duraram menos que as minhas e ele me ajudou imensamente a me desfazer delas!) se desfizeram e não foram substituídas por nenhuma outra e que restavam os livros, os discos (ele tinha uma bela coleção de CD's) e alguns pouquíssimos amigos. Com Fernando se foi um estilo de conversação que nunca mais encontrei em ninguém. Azar o meu!
Flávio Brayner, professor da UFPE
*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC