Fui dormir com o rádio de pilha ligado na cabeceira da cama, peguei no sono e só acordei hoje de manhã com um clássico de Noel Rosa, interpretado magistralmente por uma cantora que não consegui identificar: Perto de você me calo/Tudo penso e nada falo/Tenho medo de chorar. E aquilo me doeu no coração. Quem foi maior: ele ou Ary Barroso? É verdade que Noel era um compositor romântico, que transpôs o autêntico samba do morro para a cidade, "urbanizando-o" - se o termo exato for este - mas sem perder a picardia, a malemolência e o ritmo do samba de raiz, impregnado de malícia ("de toda mulher"?), ironia e mensagem social (A minha cama é uma folha de jornal e Palmeira do mangue não vive na areia de Copacabana).
Se Noel cantou Vila Izabel de forma simples e direta, Ary Barroso passeava com competência e grandiloquência pelo samba-exaltação como Aquarela do Brasil, mas ambos passeavam, sobretudo, pela dor de cotovelo: Esse amor que não esqueço e Risque meu nome do seu caderno, pois não suporto o inferno do nosso amor fracassado. Os dois brincavam em todas as posições.
Por coincidência, depois do café, recebo o telefonema de minha filha Ciquita falando sobre música popular brasileira. Pedi pra tocar, no seu som, Aparência, interpretação de Márcio Greyck. Curtimos a gravação, ela adorou e estranhou eu gostar de "brega". Respondi que não existe diferença entre brega e clássicos populares, música antiga ou moderna, existe música boa ou ruim. Como exemplo citei "Na virada da montanha", de Lamartine Babo, criação de Chico Alves, em 1935 (A saudade vem chegando, a tristeza me acompanha), e o bolerão "Tortura de Amor", lançado por Waldick Soriano, nos anos 60, com grande sucesso. E foi com isso que você me conquistou/Com esse jeito de menina e esse gosto de mulher, de Reginaldo Rossi, Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão; Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada; Mas eu farei de suas chagas cicatrizes. Boa receita é sublimar a dor do amor dançando agarradinho com a pessoa amada ao som de um samba canção dolente. Pode até não curar a ferida, porque a dor que mais dói é a dor do amor. Aço frio de um punhal foi o seu adeus pra mim, Porque você foi meu grande e doce amor. As músicas de Capiba eram tocadas e dançadas no Caxangá Golf Club, Country, Internacional e Português. No Atlético de Afogados, Sargento Wolff, Clube das Pás, nas Gafieiras, cabarés da zona boêmia do Recife, nas radiolas de ficha, em Casa forte, Boa viagem e Linha do Tiro.
Arthur Carvalho é sócio efetivo da Associação Brasileira de Imprensa - ABI
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