Para representar certos papéis no teatro grego, os atores usavam máscaras (inclusive para os papéis femininos, já que as mulheres eram proibidas de participarem). Estas máscaras chamavam-se "personas": é daí que vem "personagem" e "personalidade". É estranho que a "personalidade", aqueles traços de caráter que nos definem e identificam, tenha origem numa máscara, cuja função é exatamente esconder aquilo que somos ou a aparência que temos.
A máscara que cobre o rosto produz no outro uma imagem modificada de nós mesmos e, retirada a máscara, "voltamos" à nossa aparência real. No entanto, se não existissem estas superfícies polidas (espelhos), eu nunca saberia como é o meu próprio rosto: os outros poderiam me dizer algo como "você tem olhos negros", mas eu nunca os veria diretamente e teria que acreditar que minha aparência é aquilo que os outros dizem dela!
Toda idéia de se obter uma vida "autêntica", em conformidade com minha "interioridade" (meu desejo, minha "vocação", meu projeto), passaria por jogar fora as "máscaras" (falsidades) que toda civilização nos impõe sob a forma da etiqueta, da polidez, do moralismo... É verdade que para cada cenário social construímos para os outros "máscaras" diferentes, uma "representação do Eu", para usar a expressão de Erwin Goffman ("A representação do eu na vida cotidiana"), ou seja: sem as máscaras, exporíamos nossa fragilidade, com a "interioridade" à mostra. Sem a "falsidade" mascarada no rosto não teríamos civilização, que exige sempre uma renúncia a nós mesmos para construir ordens coletivas.
Mas agora todo mundo usa máscara (estou fazendo fisioterapia com Iohanna Oliveira e Amanda Moura - excelentes!- há mais de um mês e nunca vi o rosto delas, nem elas viram o meu!), e já vi até algumas máscaras que, ao invés de esconder, expõem "interioridades" (cores do time, dizeres políticos, feministas, étnicos, com bandeiras nacionais, personagens infantis ou macabros...). O filósofo E. Lévinas achava que "o rosto do Outro nos interpela(va) incondicionalmente": sugeria, assim, uma nova Moral vinda, não mais de Deus, nem de minha consciência, mas deste "Outro" cujo ROSTO me pede: "Não matarás!". Mas agora os rostos estão cobertos, sem nariz, sem boca, sem expressão e, no fundo, me dizem apenas para ter cuidado, que há perigo em toda aproximação: "Posso matar!"
Para os gregos a máscara era alegoria; para nós, hoje, é ameaça! E como uma vida "autêntica" nunca foi realmente possível, a máscara pandêmica nos livrou finalmente de persegui-la.
Flávio Brayner, professor Titular da UFPE
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