Perdi a inspiração, a vontade e o entusiasmo. Agora se me foram de vez. É uma coisa de Brasil. Quando a gente vivia a ditadura militar, era fácil, a inspiração vinha aos borbotões, bastava uma cerveja, dois amigos, um papel, uma caneta, a mesa do bar produzia versos imortais, que hoje orgulhosamente repousam nas bibliotecas como exemplos de rimas e catarse. Ainda se sonhava com um Brasil livre, pelo menos era uma prenda buscada, corríamos atrás da liberdade como cachorrinhos atrás da prenda, saltitantes, bastava ver um ato contra a imprensa, a liberdade de expressão, e era em prosa, em verso, em canções, é tão grande a tristeza de não mais ouvir as canções, que dá saudade da prisão.
Sim, da prisão, das batidas policiais de casa em casa para ver se alguém tinha livros de Karl Marx ou de qualquer outro escritor não conhecido dos censores, aí já seria mortal, dava porrada, mas dava verso, prosa e canção. Não era uma coisa só política, naquela época, eu me refiro aos anos 70, éramos mais livres, pensávamos com mais alma, amávamos mais uns aos outros, nós nos comunicávamos bem, sem falar no fato de que estávamos sempre juntos, de modo que uma prisão, por qualquer motivo, seria sempre coletiva e histericamente engraçada.
A inspiração vinha daí, dessas coisas misturadas, as amizades construídas como pontes que se sobrepunham a mares, juntando oceanos, acirrando do nada as obscenidades provectas do amanhã, quando já deixariam de ser obscenidades, éramos futurólogos, poetas, romancistas e compositores. Depois,as coisas foram tomando um rumo diferente, a noite política aparentemente se foi, os romances se tornaram mais verdadeiros em sua intensidade novelesca e sinuosa, as estradas se tornaram mais largas, os homens mais obscenos no presente mesmo, já promíscuos, a vontade de construir as coisas atravessou as pontes e voltou sobre as pontes, os oceanos ficaram ali esquecidos, só revolvendo as águas, o barulho ensurdecedor das águas nos chamando, não mas ouvíamos éramos pessoas com vontades diferentes, não queríamos a mesa do bar, nem a caneta, nem o acaso desmiolado da poesia, não queríamos mais nada. Em mim, depois que a vontade foi embora, ficou a falta de entusiasmo. No país, nas pessoas, para mim não sobrou inspiração, nem vontade, nem entusiasmo.
João Humberto Martorelli, advogado
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