A moldura

João Humberto Martorelli
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João Humberto Martorelli
Publicado em 30/07/2020 às 6:00
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Emoldurar panoramas e afetos, tentando exercer novo ofício nos quatro, e já entrando em cinco, meses de cativeiro paulistano. Não tenho habilidades com o pincel, o desenho e as cores, faço então molduras. A estática irritante, mas acolhedora, de meu pequeno apartamento no Itaim, a partir dela foi que emoldurei a primeira imagem, um espaço aconchegante flutuando no ar, de onde, cercado pelo clima de doenças, tratamentos, cirurgias e convalescenças, posso divisar a opressão do concreto suavemente limitada pela inserção verde do Ibirapuera. E de onde se sugerem outras paisagens, a exemplo do mar escondido e ao mesmo tempo exaltado entre as folhas de coqueiro, visto do alto de Olinda, o olhar enviesado do artista já na moldura, eu emoldurando-o outra vez, e outra, até que a tonalidade de azul fique perfeita em minha memória e não saia mais para que possa voltar a vê-lo apenas em sua moldura original, comparando a memória com o quadro, como em um pedaço de bolo que a gente guarda para comer no dia seguinte, esperando repetir o sabor.

As molduras verdadeiras, reais, as molduras dos quadros ajustados nas paredes de meu apartamento em Recife, em ordem emocional, significativa para mim, e só para mim, soldados a postos protegendo as terríveis noites de insônia e as invasões de bárbaros, monstros e, sobretudo, de pensamentos tristes, companheiros estáticos carregando a beleza de emoções que não vivi, que me foram transmitidas em molduras para todo o sempre, diretamente do coração do criador, emoções que me salvam e me protegem como a Salve Rainha, orações nas paredes, a cujo simples olhar a alma se tranquiliza e a mão se estende em proteção. Fiz também uma moldura para colocar as lembranças fotográficas, não as tiradas do celular, aquelas gravadas em mim, mãe, pai, irmãos, filhos, amigos e amores, a família protegida na grande e universal moldura do afeto. A memória de Recife também emoldurada, Recife é a paisagem das manhãs que me acolhem com o sol batendo no rosto e o mar à vista, deslumbrante, infinito, a brisa envolvendo a vida com a ligeira, aparente e agradavelmente enganadora sensação de eternidade. E a tantas e tão grandes e pequenas coisas, e pessoas, e sentimentos eu emolduro neste penoso exercício de sensações, que me custa perceber o significado do novo ofício: as molduras substituem as palavras que já não fazem sentido, senão aprisionar esperanças e saudades. Para libertá-las um dia, quando tudo passar.

João Humberto Martorelli, advogado

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