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Quando católicos ficam contra o papa

Engolir um homem que passou os últimos dez anos incomodando as nossas consciências com palavras que demandam uma mudança de mentalidade não é fácil

Por JC Publicado em 06/04/2025 às 0:00

GABRIEL MARQUIM


Se você esteve no planeta Terra nos últimos meses, sabe que o papa Francisco passou quase 40 dias internado. Uma espécie de quaresma dentro da Quaresma. Este texto poderia ser, portanto, o modo como, pessoalmente, o Santo Padre viveu espiritualmente esses dias, porém, pelos sinais dos nossos – tumultuados – tempos, será preciso fazer uma curva.


Se há um sinal claro e evidente do que significa ser conservador para um católico é o amor – e a devoção – ao Vigário de Cristo na Terra, como dizia Santa Catarina. Os católicos mais conservadores sempre demonstraram um íntimo e profundo respeito – até veneração – pelo papa. Com Francisco, as coisas ficaram diferentes: quanto mais conservador você é – ou pensa que é – mais aversão você tem ao homem de solidéu branco. O que aconteceu?


Para responder a essa pergunta, nós poderíamos fazer um verdadeiro esquema teórico e conceitual (se puder, leia “As reformas da Igreja Católica”, de João Décio Passos), mas vamos dar apenas algumas pistas para entender esse fenômeno. Em primeiro lugar, vamos recordar que o papa Francisco recebeu dos cardeais que o elegeram um fardo bastante pesado: levar adiante uma reforma. Ser um papa reformador é uma tarefa realmente exigente, e fatos sobre isso na História da Igreja são abundantes. Porém, Francisco é um papa que reforma a partir de si: ou seja, a sua primeira reforma é no próprio papado.


Sim, Francisco, digamos, embaralhou as cartas do que é ser papa. Porém, aqui, é preciso entender: embaralhou para dar mais significado, porque, para ele, ser papa é ser, antes de tudo, servidor. E não é possível servir apegado a elementos do passado que não sejam necessários. Muitos conservadores não entendem ou simplesmente não aceitam isso. Mais: Francisco não apenas está mudando o jeito de ser papa, ele ficou ao lado de pessoas e grupos que não encontravam muito espaço. Os pobres, as mulheres, a comunidade LGBTQIA+, enfim, o papa colocou no centro das atenções quem não costumava recebê-las com muita generosidade. Resultado: muitos conservadores viram seu poder ameaçado.


Há, ainda, o fenômeno dos magistérios paralelos, especialmente nas redes sociais. Como escreveu Andrew Keen, em seu importante “O culto do amador”, a relevância atualmente não se dá pela autoridade da tradição, mas do amadorismo que se qualifica, por exemplo, na quantidade de seguidores. Assim, milhares de católicos, por exemplo, não dão a menor importância ao ensinamento dos seus bispos – e nem mesmo ao conjunto deles, como é o caso da CNBB – mas ao influenciador que tem milhões de seguidores ou visualizações. Engolir, portanto, um homem que passou os últimos dez anos incomodando as nossas consciências com suas palavras que demandam uma mudança de mentalidade não é fácil. Melhor é escolher o pastor que me apetece do que aquele que, ensina a Igreja, Deus escolheu.


Misturem-se esses argumentos – e muitos outros – e você entenderá – perplexo, provavelmente – esse fenômeno de católicos que torcem – nem sempre às claras – pela morte do papa. Em tempos em que seguir e não seguir é o modo como nos comunicamos uns com os outros, nada mais natural do que muitos católicos acharem que podem “des-seguir” o papa, mesmo que o preço seja a sua morte. Isso, claro, não tem nada de conservador. Os verdadeiros conservadores católicos sabem quem é o papa na teologia cristã. Esses grupos – tradicionalistas e fundamentalistas – são o oposto disso. Relativizam o papa quando ele não lhes agrada: o cúmulo do relativismo moderno. Sim, são ultraconservadores relativistas: contradições modernas. A propósito, vida longa a Francisco.

Gabriel Marquim é jornalista, professor universitário e fundador da Comunidade dos Viventes. É doutor em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco