Dia do trabalhador: mesmo com mais empregos, Brasil enfrenta dilema da precarização e descrédito da CLT
País ainda convive com alto número de pessoas trabalhando sem carteira assinada e trabalhando por conta própria, mesmo que em situação precária

Apesar da economia brasileira apresentar o maior nível de ocupação e o menor nível de desocupação dentro da série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Dia do Trabalhador chega com um alerta para a reflexão acerca das flexibilizações trabalhistas, tracionadas pela ampliação da "pejotização" e o desgaste da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), com relação direta sobre o modo de pensar de uma nova geração influenciada por modelos diversos de garantir rendimentos dentro de um País com um regime previdenciário ainda em apuros.
Mesmo com números recordes, o mercado de trabalho brasileiro ainda sofre graves distorções, em indicadores como informalidade, trabalho por conta própria e subocupação. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o mercado de trabalho em 2024, o nível de ocupação foi de 58,6%, recorde da série histórica iniciada em 2012. São 26 milhões de pessoas trabalhando por conta própria, número 30% maior que em 2012. A taxa de desocupação foi de 6,6%, a menor da série histórica.
A taxa de subutilização ficou em 16,2% e, apesar de menor que em 2023, está maior que o menor nível da série (16,5 milhões de pessoas em 2014). O número de pessoas subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas foi de 5,1 milhões de pessoas, enquanto a população desalentada — ou seja, pessoa que gostaria de trabalhar, mas desistiu de procurar emprego por acreditar que não conseguiria — ficou em 3,3 milhões de pessoas, maior que sua menor ocorrência em 2014 (1,6 milhão de desalentados). A taxa anual de informalidade ficou em 39%.
“Esses dados mostram que, apesar de a economia brasileira apresentar o maior nível de ocupação e o menor nível de desocupação desde o início dessas estatísticas em 2012, houve piora em vários outros índices, como aumento no número de pessoas trabalhando sem carteira assinada e trabalhando por conta própria. Também aumentou a taxa de subutilização, somadas às pessoas subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas; as desocupadas; e as que integram a força de trabalho potencial. Aumentou também o número de pessoas subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e o número de pessoas desalentadas. Além disso, a taxa de informalidade ainda é muito alta”, analisa a professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Lucilene Morandi, em publicação especial da universidade.
Essa realidade tem correlação direta com a transformação cultural e econômica advinda com a reforma trabalhista de 2017 e a ascensão da chamada "pejotização", sobretudo nos mais jovens, que desacreditam do emprego formal e das benesses sob o guarda-chuva da CLT.
Para a professora Flávia Manuella Uchôa, do Departamento de Administração da UFF e coordenadora do Núcleo de Estudos em Psicologia Social do Trabalho (NUPST), a juventude que chegou ao mercado de trabalho nos últimos 25 anos teve acesso limitado à formalização, com muitos jovens incluídos na sociedade mais pelo consumo do que por direitos, "enfrentando rotinas de trabalho precarizadas, especialmente no setor de serviços, onde predominam baixos salários e proteção social insuficiente".
“Diante disso, boa parte desses jovens enxergam hoje na carteira assinada mais uma armadilha do que uma solução. Muitos rejeitam esse modelo não por falta de vontade de trabalhar, mas por perceberem que ele não garante segurança, renda digna ou perspectivas de futuro. A escolha, na verdade, é entre o precário e o ainda mais precário. A aversão ao regime celetista, portanto, não é rebeldia — é um reflexo direto de um mercado de trabalho que ainda oferece pouca dignidade e quase nenhuma segurança”, analisa a pesquisadora.
PEJOTIZAÇÃO NA JUSTIÇA
A Justiça do Trabalho registrou, em 2024, um total de 285.055 processos que pedem o reconhecimento de vínculo empregatício, segundo dados compilados pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). O número representa um aumento de 57% na comparação com 2023, com mais ações relacionadas à “pejotização”. O número, considerado alto, colocou em confronto o STF e a Justiça do Trabalho, com o Supremo passando a interferir nas ações.
Em recente decisão liminar, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu os processos sobre pejotização até decisão da Corte. O ministro destacou que a controvérsia sobre a legalidade desses contratos tem sobrecarregado o STF diante do elevado número de reclamações contra decisões da Justiça do Trabalho que, "em diferentes graus, deixam de aplicar entendimento já firmado pela Corte sobre a matéria".
“O descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”, afirmou.
De acordo com Carlos Eduardo Ambiel, mestre e doutor em Direito do Trabalho e sócio do Ambiel Advogados, a repercussão geral abrange não apenas a definição de competência entre a Justiça do Trabalho e a Justiça Cível, mas também aspectos fundamentais como o ônus da prova e a própria validade dessas formas de contratação à luz da ADPF 324, que reconheceu a constitucionalidade de outras modalidades contratuais no contexto da liberdade econômica.
“A medida afeta diretamente grande parte dos processos que hoje tramitam na Justiça do Trabalho, nas diversas instâncias, uma vez que a pejotização, bem como a contratação de autônomos, representa uma parcela significativa das atuais relações de trabalho no país, muitas das quais ocorrem sem vínculo formal de emprego. Com a suspensão, ações que discutem a existência ou não de relação empregatícia ficam paralisadas por tempo indeterminado, causando insegurança jurídica e impactando tanto trabalhadores quanto empregadores, além dos advogados que militam da área”, destaca Ambiel.
IMPACTO NA PREVIDÊNCIA
Pelo viés econômico, embora a "pejotização" tenha surgido como uma possibilidade de mais contratações a custo reduzido para o empregador, há um impacto na garantia de recursos previdenciários ao trabalhador. Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a contratação de trabalhadores como PJ’s já custou ao menos R$ 89 milhões aos cofres públicos desde 2017, quando aprovada a reforma trabalhista, representando mais um acréscimo à já deficitária Previdência Social.
A aposentadoria, aliás, garantida pela Consolidação das Leis Trabalhistas, tem se tornado uma das principais preocupações do trabalhador. Com uma pirâmide etária em transformação, o Brasil vive a transição de uma população cada vez mais velha, ou seja, mais beneficiários do sistema previdenciário, ao mesmo tempo em que menos contribuintes ajudam a equilibrar a conta. Menos jovens passarão a compor a população, menos jovens estão sendo atraídos pelo emprego formal e contribuindo com a arrecadação da Previdência, e o País já caminha para uma inevitável nova reforma previdenciária - sem garantia de melhores condições no futuro.