Memórias

Joyce Moreno rememora cinco décadas de música brasileira

Testemunha ocular da história, ela começou, aos 19 anos, nos célebres festivais da MPB dos anos 60

José Teles
Cadastrado por
José Teles
Publicado em 12/11/2020 às 18:33 | Atualizado em 12/11/2020 às 18:43
DIVULGAÇÃO
BENDITA SEJA A jovem Joyce entre Mauricio Tapajós, Paulinho da Viola, João Bosco e Sérgio Ricardo - FOTO: DIVULGAÇÃO

“O que ocorreu naquela noite daria para escrever o roteiro de um filme. O corredor do hotel – estávamos todos no mesmo andar – virou um formigueiro, um zunzum de gente indo e vindo a noite inteira, entrando e saindo dos quartos: não só nosso grupo, como amigos que já tínhamos na cidade e que apareceram para assistir à nossa trip. E que trip! Em cada quarto em que se entrasse, havia um happening diferente. No de Naná, por exemplo, estava sendo celebrada uma espécie de missa afro-brasileira, uma cerimônia ao mesmo tempo profana e religiosa para os erês invisíveis que, segundo ele, moravam ali. Uma pequena plateia de americanos assistia em respeitoso silêncio. Entrei, comecei a cantar a Bachiana nº 5, com o berimbau de Naná em contraponto, numa performance que mais tarde tentaríamos em vão repetir. Nunca mais deu tão certo, é claro, se é que dera naquela noite”.
O texto entre aspas pinçado de Aquelas Coisa Todas – Música, Encontro, Ideias (Numa Editora), de Joyce Moreno, cantora, compositora, e testemunha ocular da história da MPB desde a era dos festivais, de que participou mal saída da adolescência, deixando para trás uma promissora carreira no jornalismo (na época começava a estagiar no Jornal do Brasil). O “promissora”, porque ela tem um excelente texto jornalístico, de observar detalhes, ter boa memória e não usar mais palavras do que as que são necessárias. Na verdade, Aquelas Coisas Todas são dois livro em um. A primeira parte traz de volta o Fotografei Você na Minha Rolleyflex, lançado em 1997 que é, vamos dizer, o mais jornalístico, no formato crônica, contam-se episódios da música brasileira, sobretudo das décadas de 60 e 70, vividos por Joyce Moreno, ou de terceiros, que lhes foram contados. A segunda parte é mais autobiográfico, mais reflexivo. Ambos se entrelaçam, fatos narrados no primeiro, são complementados no segundo.
Hermínio Bello de Carvalho e Nelson Motta assinam dois prefácios e são, ambos os personagens de algumas passagens do livro. Joyce teve sorte de estar certo no Rio certo, é o que se deduz da primeira parte do livro. No breve estágio no JB o primeiro amigo que fez foi com o cartunista Lan. Moravam na Zona Sul, ela virou caroneira do desenhista: “Quando me classifiquei para o Festival Internacional da Canção, ele publicou uma charge genial, onde eu aparecia, bendita fruta, entre os rapazes concorrentes, e cercada por meus novos amigos, Nelsinho, Edu, Dori e Milton”, claro, Nelson Motta, Edu Lobo, Dori Caymmi e Milton Nascimento, em 1967. Aos 19 anos, ela já estava lá, fazia parte da turma. Das poucas mulheres que não se limitavam a interpretar os marmanjos, era compositora.
Com uma forma bem particular de contar histórias, Joyce Moreno procura sempre evitar o lugar comum, como ao comentar sua amizade com Vinicius de Moraes, e o faz pontuando por fases, cada uma delas com nome da esposa da vez: “Conheci Vinicius na Era de Nelita. Escutei muitas histórias como fora Ele nas eras anteriores (Tati, Lila, Lucinha) ... No dia mesmo em que nos conhecemos me adotou imediatamente como cúmplice, me fez ir com ele a Nova Iguaçu, acompanhá-lo num encontro com normalistas, a que se comprometa comparecer”. Momentos que esquecidos horas depois, são perenizados nas memórias de Joyce Moreno, como um almoço na casa de Hermínio Bello de Carvalho. Tocaram a campainha. Era um músico que vinha encontrá-la trazendo um amigo. Dois Antônios. O primeiro o amigo de Joyce, o segundo o amigo do amigo. Antonio Pecci Filho, Toquinho, e Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, Tom. Vinham do estúdio, onde tinha gravado Retrato em Branco e Preto (Tom e Chico). “Contei essa história para o Hermínio um dia desses e, incrivelmente, ele não se lembrava. Só se lembrou mais tarde, quando lhe veio à memória a inacreditável cena do Tom, em alto teor etílico descendo a ladeira da Benjamin Constant de marcha ré na contramão”.
Difícil um nome ou acontecimento importante dos anos 60 a 80, sem que Joyce Moreno que não figure nas páginas do apropriadamente intitulado Estas Coisas Todas. Pena que em algumas episódios prefira não dar nome aos bois, como quando conta sobre uma cantora que detestava cantar sambas. Em 1968, no entanto, convidada para intérprete num festival de música popular caiu-lhe logo um samba. Ela tentou trocar a música com outros interpretes, mas ninguém topou. A cantora acabou caindo no samba e para sempre. O samba fez tanto sucesso que ela se tornou uma das sambistas mais louvadas do país (não diz nomes, mas dá pistas, que sugerem que a “sambista” talvez atendesse pelo nome de Beth Carvalho)
PELO MUNDO
O episódio contado no início da matéria, aconteceu quando ela integrou o grupo do pianista Luizinho Eça numa temporada mexicana. A carreira internacional de Joyce Moreno é rica e extensa. Em Nova Iorque começou a namorar com o baterista Tutty Moreno, com está casada há muitos anos, lá gravou discos, na Europa gravou e fez turnê com Naná Vasconcelos e Mauricio Maestro. Foi parceira de Gerry Mulligan, conta que como a admiração por João Gilberto transformou-se em medo. É um caudal de histórias.
Conta “causos”, feito o de Agostinho dos Santos sendo reconhecido pelo motorista do táxi, que pediu para levá-lo à sua casa para que conhecesse a mulher dele. A contragosto, para não decepcionar o fã. Chega na casa, é apresentado à mulher, que pelo jeito não sabia quem ele era. O marido tenta ajeitar a coisa: “Este é o famoso Agostinho dos Santos”. E a mulher: “o senhor desculpe seu Agostinho, é que tenho visto poucos jogos do Santo”. E ainda inconveniências de amigos, como aconteceu no casamento de Nelson Motta com Monica Silveira. A música ficaria a cargo de Lusinho Eça, um quarteto de cordas e as vozes de Elis Regina e Joyce Moreno: “Lá embaixo, no altar, ninguém menos que dom Hélder Câmara oficiava a cerimônia. De repente, um frouxo de riso no meio dos músicos: um inesperado mau cheiro tomava conta da parte superior da igreja. Alguém se peidou-se, disse Elis, com sua proverbial sutileza, e, ato contínuo, emendou num vocalise dos deuses, como se nada estivesse acontecendo. Tipicamente ela”
A segunda parte é mais intimista, Joyce Moreno continua traçando a história da MPB de que continuou tomando parte ativa, embora não frequentando tanto as paradas com o status de ídolo que alguns dos contemporâneos adquiriram. Seu grande sucesso aconteceu num festival promovido pela Rede Globo, em 80, com a canção Clareana, e o álbum Feminina. Ela conta também percalços na carreira, quando foi boicotada pela EMI, ao questionar a regravação de músicas suas por um cantora que empregou as mesmas bases do seu disco. Relembra os amigos, lamenta não ter aproveitado mais suas companhias. Arremata, contando o constrangimento porque passou ao participar de um especial decembrino anual do Rei Roberto, mas o importante é que emoções ela viveu. Um livro que deve ser lido por todos que se interessam pela música brasileira em sua fase mais rica, diversificada e heróica.

 

Comentários

Últimas notícias