
“Descemos um corredor escuro e entramos numa sala enorme. Meu novo amigo segura em meu cotovelo para apoiar-me enquanto contemplo as fileiras e fileiras de corpos nus que cobrem o chão, às vezes empilhados, quase todos com feridas abertas, alguns com as mãos ainda amarradas às costas. Há velhos e jovens... centenas de cadáveres... que são selecionados, arrastados pelos pés e colocados em uma pilha pelos que trabalham no necrotério... O necrotério está tão cheio que os cadáveres enchem todo o prédio, inclusive os escritórios da administração... uma longa fila de cadáveres, estes vestidos, alguns aparentando serem estudantes, dez, vinte, trinta, quarenta, cinqüenta... e lá, bem na metade, descubro Victor.”
Este relato macabro não é de nenhum campo de concentração nazista ou do Khmer Vermelho, no Camboja. Aconteceu em 18 de setembro de 1973, no Chile, sete dias depois do golpe que derrubou Salvador Allende. Quem o narra é Joan Turner Jara, bailarina americana. O cadáver que ela reconheceu foi o de seu marido, o cantor, compositor e teatrólogo Victor Jara, um dos principais nomes da Nueva Canción Chilena, movimento surgido no final dos anos 60. Jara foi também uma das mais notórias vítimas, entre as centenas de opositores assassinados e torturados no Estádio do Chile, transformado em prisão pelo militares golpistas. Victor Jara tinha o peito crivado de balas (44 tiros), e uma ferida aberta no abdômen. Ao contrário do que se conta, ele não teve as mãos cortadas. Os pulsos é que foram esmagados por cabo de fuzil. Victor Jara está para Pinochet, assim como Garcia Lorca para o generalíssimo espanhol Francisco Franco.
O trecho entre aspas foi pinçado do livro Canção Inacabada — A Vida e Obra de Victor Jara, de Joan Jara, mulher do músico assassinado. Victor Jara já foi reverenciado por nomes como U2, The Clash, Calexico, Simple Minds. Agora é tema de um álbum inteiro, Even in Exile, do galês James Dean Bradfield (Manic Street Preachers), que musicou poemas do teatrólogo, também galês, Patrick Jones sobre o artista chileno. Jones é irmão de Nick Wire, baixista do Manic Street Preachers.
ÓPERA ROCK
Talvez sem se dar conta, Bradfield retomou a ópera rock. A música é pop rock de primeiríssima, com grandes canções, a exemplo de Without Knowing The End (Joan’s Song), que soa como se Johnny Marr tocasse a guitarra do R.E.M. Mas outras influências permeiam o álbum, do Rush e do Pink Floyd. Às vezes soam meio estranhas num disco basicamente de canções com fundo político, aberto com Recuerda: “Lembre-se de Thatcher, Nixon, Pinochet/ como a terra da liberdade/deu fim aos que não obedeceram/ em nome da liberdade”, canção que lembra o Pink Floyd da fase The Wall.
Mas não é um rompante de James Dean Bradfield alertado pelo crescimento da direita mundo afora. Sua música no Manic Street Preachers evoca a política quase sempre, no seu disco solo anterior também. Bradfield gravou todos os instrumentos e vozes. Um álbum que poderia ser levado ao palco, como um musical sobre Victor Jara. Os climas modificam-se de acordo com o assunto específico da canção. Bradfield teve o bom senso não cantar em espanhol com sotaque. Apenas duas canções têm título nessa língua, Recuerda e La Partida, esta última não tem letra, só um coro, numa larará eloquente. Uma oportuna homenagem ao, músico e militante político, que gravou relativamente pouco. Seu primeiro disco é de 1966, quando foi morto tinha dois álbuns prontos. Somente em 1990, o governo do Chile reconheceu que Victor Jara fora assassinado pelo estado em 15 de setembro de 1973.
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