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Guarabyra em livro de memórias e impressões do cotidiano

Em Teatro dos Esquecidos autor de Dona, conta como esta música lhe surgiu num sonho

José Teles
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José Teles
Publicado em 20/06/2020 às 11:08
Divulgação
Guarabyra, crônicas - FOTO: Divulgação

Gutenberg Guarabyra estava com 19 anos quando venceu a fase nacional do Festival Internacional da Canção, em 1967 (ficou em terceiro, na fase Internacional). “Recebi o cheque com a mais alta soma que já havia ganhado em toda a minha vida. Também não me recordo se foi Boni ou Borjalo quem o entregou, só sei que quando pus as vistas na quantia ali escrita, lembrei-me, no ato, da época da pobreza. Na sequência lembrei-me do devaneio do guaraná que não acabava mais. Segurei o cheque por uma ponta. As borbulhas subiam na minha imaginação e estouravam borrifando perfume de guaraná pelas salas da Globo, pelos corredores”.
O trecho entre aspas é da crônica Teatro dos Esquecidos, que dá nome ao livro que Guarabyra lançou pela Editora Toth, de Curitiba, com crônicas autobiográficas, do cotidiano, conto meio crônicas. (241 páginas, R$ 65). O “guaraná’ remonta a sua infância, de classe média remediada, do interior da Bahia, Bom Jesus da Lapa, na região do São Francisco. Nos anos 50, Guaraná Champagne era luxo de cidade grande. Guarabyra ansiava pelos sábados, porque era nesse dia que podia desfrutar guaraná, que assume na crônica o papel da madaleine proustiana.
Guarabyra ganhou o FIC com Margarida, hoje esquecida, mas que desbancou Travessia, de Milton Nascimento e Fernando Brant, e Carolina, de Chico Buarque (respectivamente, segundo e terceiro lugares). E Alegria Alegria, quando Caetano canta “Você precisa saber, da margarina, da Carolina”, onde se escuta “margarina”, ouça-se “Margarida”. Gutenberg Guarabyra é de uma geração em que se lia muito. Escreve bem. Os textos do livro ficam entre histórias urbanas, de São Paulo ou Rio, da sua infância e parte da adolescência no sertão baiano, e de bastidores da música.
“Ele viveu a efervescência dos anos 60, quando se ia ao Cervantes comer um sanduíche e se encontravam os iniciantes da época, Milton, Gilberto Gil, Caetano Veloso” A estrela maior era Chico que havia estourado com A Banda, os outros aguardavam a vez. No meio daqueles jovens o maestro Guerra-Peixe, e Guarabyra uma noite conta que foi arrastado para uma reunião do partido comunista no apartamento do maestro. O Cervantes continua existindo, no Leme, mas nessa época funcionava em Botafogo.
Entre histórias de amigos, vizinhos, donos de bares, a crônica A Inominável Cobra-cega de Pinheiros, ou Sutiã de la Bengell, Guarabyra vai contando episódios sobre sua carreira, e da MPB de que é testemunha ocular desde a década de 60. Conta, por exemplo, o início do trio que implantou o rock rural no país, o Sá, Rodrix e Guarabyra, para o qual ele entrou por acaso: “Minha adesão se deu quando, após encontrar com Sá perambulando por Ipanema, soube que acabara de se separar da mulher e que ficara sem ter pra onde ir”. Guarabyra o convidou para o apartamento que ele divida com outras pessoas. E a logo a dupla Sá & Rodrix, acrescentaria o “Guarabyra”. Zé Rodrix sairia, e continuariam como a dupla Sá & Guarabyra, cujo maior sucesso foi Dona, que completou 38 anos e continua sendo uma das canções mais tocadas nas rádios do país.
DONA
Sá & Guarabyra estavam em Goiás. Guarabyra acordou com um tema musical que lhe veio num sonho: “A melodia, estranhamente, chegava com fragmentos de letra, coisa rara de acontecer em meus sonhos. Dona ... daí seguiam-se compassos de puro solo instrumental. Inesperadamente a letra reaparecia: tã, tã, tã batem na porta, não precisa ver quem é. Sucediam-se alguns compassos interpretados unicamente por instrumentos, para mais uma vez ressurgirem as palavras: entre a cobra e o passarinho, entre a pomba e o gavião”. Ele acordou e já estava com a melodia quase completa na cabeça, escreveu os fragmentos de letra numa folha de papel. Luis Carlos Sá dormia no quarto acima do dele. Guarabyra nervoso, com medo de perder a música ligou pelo interfone, mas o parceiro não acordou. Depois de 15 minutos, desistiu do telefone. Apanhou um rodo no banheiro e começou a bater com o cabo no teto do quarto. “Dois quilos de caliça e pó de tinta depois, o parceiro apontou à porta, esbaforido e encontrou um teto parcialmente despedaçado”. Em pouco tempo completaram um clássico da música brasileira, que deve estar ajudando a pagar as contas dos dois até hoje.
Teatro dos Esquecidos é leitura leve, que pode ser degustada aleatoriamente, os textos fluem como deve fluir a crônica. As boas a gente lê como se batesse um papo com o autor, o que o caso destas que formam Teatro dos Esquecidos.

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