'Maior enigma do frevo é o futuro', diz DJ Dolores, que lança álbum do ritmo
"Enigma do Frevo" passeia entre o experimental e o popular, incluindo versão eletrônica de 'Vassourinhas': 'Apontamos para um frevo do futuro'

Figura central do manguebeat, o produtor e compositor DJ Dolores decidiu decifrar "o Enigma do Frevo", que dá título ao seu novo disco. O projeto surgiu com apoio do Itaú Cultural, para a criação de um site e de uma websérie — que já está no ar, com oito episódios.
O site registra alguns momentos da pesquisa, e a websérie traz depoimentos de muita gente: músicos, dançarinos, professores. Já no disco, Dolores ele propõe uma escuta sem guitarras, sem baixo, com referências eletrônicas e orquestrações de rua. Uma música que dança entre o experimental e o popular.
As faixas do álbum foram compostas pelo artista, incluindo algumas parcerias com Yuri Queiroga, Léo D e Hilton Lacerda. O álbum conta com um elenco de vozes convidadas, incluindo Laís Senna, Ylana, Jorge Riba, Caetana e Nêgo Freeza.
Em entrevista ao JC, Dolores fala sobre as suas descobertas com a pesquisa de frevo e sua ligação com a história da cidade, além dos desafios de se fazer música popular fora do circuito comercial e dos calendários sazonais: "O maior enigma do frevo é sempre o futuro", diz.
Entrevista, DJ Dolores
Que "enigma do frevo" é esse ao qual você se refere?
O "enigma do frevo" é o fato de que, embora ele tenha nascido no Recife, ainda sabemos muito pouco sobre suas origens. De certa forma, se consolidou uma visão muito fechada em torno do gênero. O álbum reflete essas experiências com o frevo — ele obedece a certas regras básicas, mas quebra várias outras, e mesmo assim permanece sendo frevo. Há faixas em que isso fica mais evidente, como uma versão desconstruída de "Vassourinhas", que é 100% eletrônica.
Há também comentários sobre o surgimento do frevo. A primeira faixa fala da "malta", que, no final do século 19, era o grupo de pessoas que seguia as grandes bandas marciais e formada principalmente por libertos. Foi um período muito rico da história do Recife, esse pós-abolição, porque havia uma convulsão social que mudava tudo: muita gente sem dinheiro, abandonada, começa a modificar a paisagem urbana e humana da cidade. A presença do frevo nasce muito desses homens.
De início, você pretendia fazer um projeto mais radical, mas acabou recorrendo às tradições também. Por quê?
Eu entendi que a natureza do frevo está na rua e está muito associada à dança. A minha intenção inicial era talvez revelar o meu próprio desconhecimento — formalmente, o projeto apresenta diversas rupturas —, mas percebi que não podia ser algo que deixasse de ser dançante. De alguma forma, era preciso conquistar as pessoas também.
É impossível desassociar a música da dança dentro do frevo.
Se a gente olhar, por exemplo, para uma comunidade africana, muitas vezes a mesma palavra é usada para designar música e dança. E com o frevo é parecido: a dança e a música evoluem juntas, passam por vários períodos históricos, mas não existe frevo sem dança, né? Foi esse tipo de conceito, que está lá na gênese do gênero, que me fez mudar de ideia.
A ausência de guitarra, baixo e violão também é importante para a sonoridade do disco. Foi uma decisão estética desde o início?
A ausência foi proposital, porque eu queria fazer um disco meio “anti-rock” (risos). Decidi usar a formação do frevo como ela se consolidou no início do século XX, quando o gênero se estabeleceu como música. Nas antigas grandes bandas marciais, você tinha uma instrumentação muito mais diversa — inclusive berimbau, mais percussão, clarinete. Mas esse formato com trompete, trombone, saxofone e tuba é uma formação típica da década de 1920, com certa influência das jazz bands.
Quando Carlos Fernando fez aquela série Asas da América, por exemplo, ele já incluiu o formato de banda de rock, com metais, mas também com baixo, guitarra, bateria — o que deu uma outra cara ao frevo. No meu caso, eu resolvi voltar à formação original do começo do século 20.
Você lançou o disco fora do período do Carnaval propositalmente?
Sim, foi uma provocação — e bem arriscada. A ideia não era fazer um frevo que falasse de Carnaval. Eu acredito que o frevo não deve estar restrito a esse período. É música popular brasileira como qualquer outro gênero. Se você prestar atenção, só uma das faixas tem letra que menciona o Carnaval. As outras abordam temas do dia a dia, para que as pessoas ouçam frevo o ano inteiro.
Diferente do samba, que foi eleito por Getúlio Vargas, na primeira metade do século 20, para ser a "música nacional" — como bom ditador, ele queria uma unidade cultural. Por isso o samba existe fora do Carnaval. Já o frevo, por conta dessa visão sudestina da indústria da música, acabou ficando restrito à folia. Mas não era assim. O frevo era tocado em datas comemorativas, religiosas, e estava presente em muitos outros contextos.
A capa do single "Das Ruas", por exemplo, é uma foto de Alcir Lacerda, feita em 1960. Nela, aparece uma banda de frevo tocando no pátio do Carmo, no centro do Recife. Todo mundo é negro. Era dia de Nossa Senhora do Carmo — não era Carnaval.
O que você descobriu sobre o Recife na pesquisa?
Acho que o mais importante foi ter aprendido a olhar o Recife de outra forma. O frevo está intimamente ligado à história da cidade — todas as suas transformações sociais acabam se refletindo nesse estilo.
A separação de classes, que é muito marcante no Recife, está lá. Você tem o frevo do salão, associado às elites, e o frevo de rua, mais ligado à periferia, a Olinda, ao Carnaval popular. Então, aquela ideia de que a música reflete a cultura de um povo — que muita gente chama de clichê — é, na verdade, uma grande verdade.
É uma música que nasce de uma cidade. E quantas cidades você conhece que criaram um estilo musical e conseguiram manter vivo esse legado? Nova York gerou o hip hop, mas Chicago também tinha, a Califórnia também. Agora, um estilo que nasce numa cidade e permanece nela com força por tanto tempo... isso é uma particularidade muito interessante do Recife.
O que seria, para você, o "enigma" definitivo do frevo — algo que talvez nem o disco tenha conseguido resolver?
Acho que é sempre o futuro. Em que o frevo vai se transformar? Escolher o frevo como ponto de partida foi uma atitude muito ousada, porque, na maior parte do Brasil, ele ainda é julgado como música de Carnaval — ou, pior, como música folclórica. E isso é fruto de ignorância. O frevo é de natureza urbana. Ele nasceu numa metrópole, e precisamos trazê-lo de volta a esse espaço contemporâneo. O que estou tentando fazer é apontar para um frevo do futuro — talvez um frevo mais pop, no sentido de ser mais abrangente e acessível.
Claro que enfrento uma resistência, porque muita gente ainda associa o frevo a uma ideia engessada, sazonal, caricata. Mas ele tem uma sonoridade muito atual, muito pra frente. A eletrônica está ali, colocada com naturalidade. As soluções que encontrei para o disco são, eu diria, bastante originais. Gostaria que essa música atravessasse a enorme barreira que a cultura pop norte-americana construiu sobre a música brasileira — uma barreira que nos faz julgar tudo a partir de uma régua de fora. Meu desejo é que ouçam o álbum sem essa comparação.
Vez ou outra discute-se quando teremos um grande sucesso do frevo novamente. Você acredita que isso ainda pode acontecer?
Novos sucessos dependem da indústria. Não é uma questão apenas de talento ou de cena — é de investimento, de promoção, de estratégia. Não existe mais espaço para amadorismo. Tudo gira em torno de dinheiro. Mas é importante dizer que existe, sim, uma cena de frevo que acontece fora do Carnaval. Mesmo quando os artistas não estão fazendo frevo diretamente, eles costumam inserir algum elemento do gênero — um sotaque, uma referência rítmica, um arranjo — em outras músicas, como a Flaira Ferro.
O Spok, por exemplo, é alguém que toca o ano inteiro. A Laís Senna também tem gravado algumas coisas. E a Orquestra Malsasombro lançou um álbum com um caráter mais nostálgico, também tem encontrado público fora do período carnavalesco. Existe uma movimentação no Recife, com caminhos diversos, tentando construir essa nova cena do frevo. Agora, transformar isso em hype… isso vai depender, e muito, da engrenagem da indústria.