ANÁLISE | Notícia

Ouviu menos frevo no Carnaval de Olinda? Entenda razões por trás do fenômeno

Sumiço das orquestras itinerantes abriu 'vácuo' ocupado por sons mecânicos, contrariando recomendações do Iphan para a salvaguarda do frevo

Por Emannuel Bento Publicado em 14/03/2025 às 16:02

A diminuição da presença do frevo nas vias principais do Sítio Histórico de Olinda durante os dias do Carnaval tem sido uma percepção recorrente entre foliões. Esse esvaziamento, que afeta um patrimônio cultural imaterial da humanidade, vem se acentuando ano após ano.

Um dos motivos é a redução na contratação das chamadas "orquestras itinerantes" – iniciativa da Prefeitura de Olinda que garantia a circulação de grupos musicais por ruas ociosas, mantendo o frevo vivo enquanto as agremiações não passavam.

Entre os Carnavais de 2020 e 2023, na segunda gestão de Professor Lupércio (PSD), o número de contratações dessas orquestras caiu 82%, passando de 400 para apenas 73. Em 2024, a Prefeitura informou ter concentrado esses grupos em cinco pontos fixos, sem detalhar a quantidade de músicos contratados.

Questionada pelo JC, a comunicação da nova gestão, comandada por Mirella Almeida (PSD), não confirmou se houve contratação de orquestras itinerantes neste ano – nem mesmo nos pontos fixos –, afirmando apenas que "o tema será discutido nos próximos meses para o próximo Carnaval".

Recomendações do Iphan

O enfraquecimento do frevo em espaços onde ele deveria ser protagonista vai de encontro às diretrizes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para a salvaguarda da manifestação, reconhecida como patrimônio cultural imaterial desde 2007.

EVANE MANÇO/OLINDA
Orquestra Itinerante no Carnaval de Olinda, em 2008 - EVANE MANÇO/OLINDA

No dossiê que embasou o título, o Iphan destaca a importância da "fruição, difusão e dinamização" do frevo, garantindo sua continuidade de forma integrada à vida contemporânea.

"A preservação efetiva só é possível quando os sujeitos, neste caso a comunidade produtora do frevo, são partes essenciais do contexto social em que o bem está inserido, e quando seu significado é compreendido e valorizado por aqueles que dele fazem uso", aponta o documento.

Ao JC, o próprio Comitê Gestor de Salvaguarda do Frevo reconheceu que a redução das orquestras itinerantes “compromete a visibilidade do frevo” e cobrou dados precisos sobre o número de apresentações e os recursos orçamentários destinados a elas.

“Isso nos permitirá investigar as razões para essa redução e buscar soluções adequadas”, afirma a nota oficial – que pode ser lida na íntegra ao final do texto.

Sobre as orquestras itinerantes

CHICO ATANÁSIO/OLINDA
Imagem de orquestra itinerante durante o Carnaval de Olinda de 2010 - CHICO ATANÁSIO/OLINDA

É importante destacar que as orquestras itinerantes são aquelas contratadas diretamente pelo poder municipal para circular pelas ruas, sem vínculos com troças, blocos ou clubes.

Já no caso dessas agremiações, os organizadores tiveram a possibilidade de solicitar orquestras à Prefeitura por meio da Secretaria de Patrimônio, Cultura e Turismo, conforme um comunicado publicado em janeiro de 2025.

A contratação de orquestras itinerantes para o Carnaval de Olinda começou na década de 1990. A iniciativa também surgiu como uma forma de garantir espaço para músicos de grupos menos conhecidos, já que as orquestras mais renomadas costumam ter agendas lotadas durante o período carnavalesco.

'Vácuo' abre espaço para som mecânico

CIRIO GOMES/JC IMAGEM
Imagem do desfile da bateria Patusco no Carnaval de Olinda, em 2025 - CIRIO GOMES/JC IMAGEM

A redução das orquestras itinerantes tem criado um vazio sonoro em algumas vias do Sítio Histórico, abrindo espaço para o protagonismo das caixas de som mecânicas em residências e estabelecimentos. O uso desses equipamentos é proibido pela Lei Nº 5306/2001, conhecida como "Lei do Carnaval".

Outro fenômeno que vem crescendo é a multiplicação das baterias de samba. Embora o ritmo também seja um patrimônio brasileiro e tenha uma presença de mais de 60 anos no Carnaval de Olinda, com o Patusco como principal referência, a expansão dessas baterias tem trazido desafios.

A maioria delas utiliza carros de som mecânicos – muitas vezes protegidos por cordões de isolamento – o que configura uma competição desigual com as orquestras de frevo.

Além disso, a maioria dos integrantes dessas baterias não tem formação musical profissional, o que torna os agrupamentos mais acessíveis. Já os instrumentos de sopro, base do frevo, exigem técnica e preparo mais específicos, dificultando sua ampla difusão.

Agremiações evitam ruas centrais

O crescimento dessas baterias, que podem reunir até 270 integrantes, tem levado algumas agremiações de frevo a evitar ruas centrais, como as do Bonfim, Prudente de Moraes e Amparo, intensificando ainda mais a ausência do ritmo no Sítio Histórico.

Por outro lado, algumas agremiações já optam por evitar ruas estreitas porque atraem multidões que não cabem mais nesses espaços - um modelo que pode ser seguido por outros grupos.

A ausência de fiscalização também contribui para esse cenário. A própria "Lei do Carnaval" prevê a criação de uma Comissão Permanente do Carnaval, responsável por garantir o cumprimento das normas. No entanto, essa comissão nunca foi implementada, permitindo que infrações sejam naturalizadas ao longo dos anos.

O que diz a Prefeitura de Olinda

Questionada sobre a contratação de orquestras itinerantes, sem vínculo a blocos, troças e clubes, a Prefeitura de Olinda informou: “A Prefeitura sabe de onde sai a concentração e do percurso de grande parte. O restante das agremiações não tem esse perfil de divulgação, é um perfil mais democrático, livre. É algo que será discutido nos próximos meses visando o próximo carnaval".

Confira o posicionamento do Comitê Gestor de Salvaguarda do Frevo:

"Observamos, de fato, uma “lacuna” significativa em relação à presença das orquestras de frevo nas ladeiras de Olinda. Essa ausência é preocupante, considerando que o FREVO, reconhecido como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO, é uma manifestação cultural profundamente enraizada no Carnaval pernambucano. A presença das Orquestras de Frevo itinerantes nas ruas é essencial para garantir o protagonismo dessa expressão cultural durante as festividades.

Para compreendermos melhor a situação, é imprescindível termos acesso a dados precisos sobre o número de apresentações das orquestras e o percentual de recursos orçamentários destinado a elas. Isso nos permitirá investigar as razões para essa redução e buscar soluções adequadas.

O estado de Pernambuco se destaca pela excelência de seus músicos instrumentistas de sopro, muitos dos quais são formados nas bandas filarmônicas de música e fanfarras. Esses espaços historicamente têm sido verdadeiros celeiros de talentos, especialmente para músicos de metais e palhetas, que compõem a base das orquestras de frevo. No entanto, temos observado uma preocupante diminuição no número de orquestras itinerantes, o que compromete diretamente a visibilidade do FREVO nas ruas e, por consequência, sua salvaguarda e transmissão.

É urgente que unamos esforços para resgatar e fortalecer essa tradição. O investimento em orquestras de frevo itinerantes não apenas valoriza os músicos, mas também todo o “SISTEMA FREVO”, que inclui PASSISTAS, ESTANDARTES, FLABELISTAS, BONEQUEIROS, CORALISTAS, MESTRES, MAESTROS E FOLIÕES. Além disso, fomenta a economia criativa local, gerando empregos e oportunidades para os profissionais que integram essa rica cadeia produtiva e cultural.

Vale, também, ressaltar o desordenamento dos desfiles de grupos, que, devido à utilização de sistemas de som mecânico (verdadeiros paredões que, praticamente, ocupam as estreitas ruas do Sítio Histórico de lado a lado), atrapalharam o desfile de tradicionais agremiações de frevo, a exemplo do Desfile dos Bonecos Gigantes, de Silvio Botelho, A Porca e a Pitombeira dos Quatro Cantos.

Destacamos a necessidade de o poder público abrir um espaço de escutas com a sociedade civil e entidades representativas ligadas ao sistema FREVO em suas diversas dimensões. Esse diálogo é essencial para receber sugestões e avançar nas demandas enfrentadas no Carnaval, garantindo a preservação e a valorização da nossa rica tradição cultural.

Essa ação é fundamental para garantir que o frevo continue a pulsar no coração das ruas de Olinda, perpetuando sua importância no cenário cultural do Brasil e do mundo”.

Compartilhe