'É fundamental dar espaços para artistas de fora; a música é do povo', diz Elba Ramalho, homenageada do Carnaval do Recife
'Não sou fechada, mas respeito a tradição. Só não pode tirar a Gonzaga da vitrola', diz cantora, que se apresenta duas vezes no Marco Zero neste ano

Paraibana de nascimento e pernambucana de coração, Elba Ramalho é figura cativa no Carnaval do Recife desde a criação do atual modelo "multicultural", com palcos espalhados pela cidade, em 2001. Antes disso, tinha participações pontuais em shows e vinha mais "para brincar", como mesmo relembra, em entrevista ao JC.
De lá para cá, as suas apresentações no Marco Zero nas noites de encerramento são sempre apoteóticas e já viraram tradição dos foliões. Mas para a cantora, a homenagem que recebeu do Carnaval do Recife este ano (que também agraciou Marron Brasileiro e Abanadores do Arruda) vai além dessa temporalidade.
"Vem também pelo fato de eu ter gravado mais de 40 frevos ao longo da minha carreira e por minha parceria com Carlos Fernando. Além disso, levei 'Banho de Cheiro' para as rádios do Brasil – foi um grande sucesso e ainda é", disse.
Sempre manuseando um terço - católica fervorosa, faz lives diárias com preces no Instagram -, ela relembrou o seu histórico com o Carnaval de Pernambuco, sua contribuição para o frevo e se mostrou aberta a intercâmbios culturais, desde que não apaguem tradições:
"Acho que é fundamental dar espaço para os artistas de fora virem e cantarem suas músicas. Afinal de contas, a música é do povo. Não sou fechada, mas respeito a tradição veementemente. Só não pode tirar a Gonzaga da vitrola, por exemplo, no São João. O Carnaval também tem que ter frevo para assistir."
Entrevista - Elba Ramalho
Quais são as suas primeiras lembranças do Carnaval de Pernambuco?
Na Paraíba, cresci ouvindo frevo desde os 12 anos. Aos 14, quando me tornei baterista de uma banda de rock, passei a tocar frevo na bateria. Mesmo sendo paraibana, devido à convivência com meu pai em casa, acabei atravessando essa ponte cultural. Minhas primeiras memórias de brincar o Carnaval em Pernambuco são de Olinda.
Foi no Rio de Janeiro, enquanto fazia teatro, que conheci Geraldo Azevedo e Alceu Valença. Sempre gostei muito de brincar no Carnaval e, ao longo dos anos, aprendi essas músicas que nos acompanham pela vida inteira.
Graças a Deus, Pernambuco, de um modo geral, mantém essa tradição musical dos velhos carnavais. Os blocos ainda existem, passando de pai para filho, e isso faz com que a história de um povo não se apague, que a cultura não se perca com o tempo.
É natural que novas gerações tragam outros entendimentos sobre o forró e outras expressões musicais, mas é fundamental que a tradição permaneça. Manter viva a essência e a origem dessa história é muito importante.
Desde que o atual modelo do Carnaval do Recife foi implantado, você toca no Marco Zero, quase sempre nos encerramentos. Como era sua participação antes disso?
Eu não tinha uma participação fixa. Vinha ao Recife mais para curtir o Carnaval e, eventualmente, fazia participações em shows de amigos, como André Rio. Muitas vezes, também estava em outras cidades, pois meu repertório também é muito ligado ao São João. Além disso, eu não participava do Galo da Madrugada naquela época – só comecei a puxar o trio há cerca de 15 anos.
Então, a homenagem talvez venha coroar essas participações nos últimos 25 anos?
Não, a homenagem vem também pelo fato de eu ter gravado mais de 40 frevos ao longo da minha carreira e por minha parceria com Carlos Fernando. Além disso, levei Banho de Cheiro para as rádios do Brasil e do mundo – foi um grande sucesso e ainda é. Se você for ao Carnaval do Rio de Janeiro, verá que as orquestras ainda tocam essa música. Também estive no disco Asas da América, que reacendeu a chama do frevo pernambucano, um projeto brilhante do meu parceiro Carlos Fernando.
Qual o impacto de Banho de Cheiro na sua carreira?
Banho de Cheiro foi o primeiro frevo a tocar em uma rádio FM no Brasil inteiro e fez um grande sucesso, especialmente no Rio de Janeiro. Eu tenho um público carioca enorme, que me acompanhou durante muitos anos e lotou o Canecão inúmeras vezes. “Banho de Cheiro" também conquistou a periferia do Rio. No entanto, não posso mensurar isso como algo que eu fiz para justificar uma homenagem. Vou receber a homenagem com gratidão, ciente de que há milhares de músicos e artistas pernambucanos que também merecem reconhecimento. Talvez, também pela minha participação ativa nos últimos anos, que tem sido bastante positiva, é que estou sendo lembrada, né?
Após um sucesso como 'Banho de Cheiro', você acha que o frevo poderia ter continuado a ter mais espaço na mídia nacional?
Claro que poderia ter mais espaço. Quando digo que, no Rio de Janeiro, em um baile de Carnaval, tocam Banho de Cheiro, fico lisonjeada, pois o Rio é um reduto do samba. Já estive presente em várias festas de samba e também fiz algumas apresentações na Bahia com Margareth, Daniela Mercury e Ara Ketu. Acho que, hoje, Alceu Valença é a figura mais autêntica do Carnaval de Pernambuco e merece todas as homenagens. Mas, como mulher e nordestina, tenho a minha representatividade no cenário nacional, e meus parceiros em Pernambuco fazem com que tudo se entrelace de forma única.
Você tem acompanhado a nova cena que cria frevos?
Não acompanho muito, mas de certa forma, fico atenta. Minha opinião é que, se eu quero escutar uma música pernambucana de Carnaval, vou ouvir Spok, Maestro Forró. No entanto, acabei de gravar com a Flaira, e estarei no disco novo dela. Também convidei Almério para tocar comigo em Arcoverde, Caruaru e até em Lisboa. Eu fui quem colocou Mariana Aydar no palco, como uma espécie de madrinha. Eu respeito essa nova cena, que é muito importante e deve acontecer. Como disse Belchior na sua música: "O novo sempre vem".
Há 25 anos temos um modelo de Carnaval Multicultural no Recife, que traz cada vez mais novas manifestações para a festa, incluindo de outros Estados. Existe quem critique isso. É possível encontrar um equilíbrio?
Se eu sou de fora e venho passar o Carnaval em Recife, vou escolher o Carnaval mais tradicional. Porém, sabemos como o galo canta. Se a administração de Pernambuco achou interessante abrir o Carnaval para ser mais cultural e incluir novos ritmos, que seja. A música e a arte são populares e, no final, cada um escolhe o que deseja.
Minhas filhas, por exemplo, estão aqui pela primeira vez em Pernambuco. Se você perguntasse a elas, talvez respondessem que querem conhecer essas outras manifestações culturais, mas também querem vivenciar os Tambor Silenciosos, os blocos de maracatu nas ruas, os blocos antigos, as orquestras de frevo. Se puderem, vão até Olinda para sentir aquela energia única da rua.
Mas é claro que, aqui, talvez haja uma necessidade de agradar e valorizar outros artistas. Esse é um assunto polêmico. Todo mundo sabe que minha posição em relação ao São João é clara: precisa ter forró. Já vi pessoas vindo do Amazonas, por exemplo, para o São João de Pernambuco, e dizendo: "Eu vim para ver o forró e me decepcionei, porque não vi quase nenhum". Isso me deixou triste.
Você anda dizendo que o seu show no Marco Zero terá muitas músicas do Jota Michiles.
Eu adoro Jota Michiles, acho que ele é uma figura incrível. Sou muito integrada com Pernambuco, minha vida toda foi assim. Trabalhei com Gonzaga, Dominguinhos, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Carlos Fernando... Minha conexão com o estado é profunda. Claro que a Paraíba sente um pouco de ciúmes. Me questionam muito sobre isso. Eu gosto muito da cultura daqui. Recentemente, fiz o Carnaval em João Pessoa, antes de começar o aqui. Só não cantei Leão do Norte (risos). Mas cantei vários clássicos, frevos, e o público cantou tudo junto comigo.
Você falou do Luiz Caldas. Nos últimos anos, vimos a rixa entre Pernambuco e Bahia voltar a se fortalecer nas redes sociais. Ao mesmo tempo, existe uma sintonia entre esses estados pela história do frevo. Como enxerga isso?
Como disse Moraes, o frevo é pernambucano, mas ao chegar à Bahia, ganhou um sotaque baiano. Moraes abriu esse leque do frevo, do Dodô e Osmar, e seguiu com essa história. Eles também criaram o primeiro galope, que virou axé, mas também pegou o galope daqui. Então, houve uma mistura, mas não existe uma "autenticidade" do frevo.
Quando eu liguei para Luiz Caldas e perguntei o que ele sabia cantar de Pernambuco, ele me respondeu: "Eu não sou do frevo, Elba". Então, eu disse: "Vamos cantar Cometa Mambembe". É uma música de sucesso que fala do Carnaval de Olinda para a Bahia.
Já convidei para o Baile Municipal nomes como Ivete Sangalo, Samuel Rosa, Ney Matogrosso. Tenho uma relação importante com esse Carnaval aqui. Acho que é fundamental dar espaço para os artistas de fora virem e cantarem suas músicas. Afinal de contas, a música é do povo, né? Eu não sou fechada, mas respeito a tradição veementemente. Só não pode tirar a Gonzaga da vitrola, por exemplo, no São João. O Carnaval também tem que ter frevo para assistir.