
Quando grandes artistas partem, um gesto marcante de homenagem é fazer uma revisita ou conhecer mais a sua obra, ajudando a deixar mais claro o peso de seus trabalhos para o mundo. Sean Connery, falecido no último final de semana aos 90 anos, certamente tem uma trajetória que dá muitas opções para realizar essa forma de homenagem. O Cinema da Fundação Joaquim Nabuco oferece essa possibilidade em tela grande, ao exibir O Nome da Rosa, popular adaptação do clássico de Umberto Eco e um dos mais marcantes trabalhos do ator escocês, sob direção de Jean-Jacques Annaud. O filme é a programação da semana na sessão especial Sábado à Tarde, marcada para às 14h,.
Connery vive William de Baskerville, um monge franciscano erudito e com traços de rebeldia, atuando também como mentor intelectual e espiritual do jovem Adso (Christian Slater) no começo do século 14. Além das virtudes da fé, Baskerville também é dono de habilidades investigativas, reforçadas por sua grande inteligência. Mentor e pupilo se dirigem para um monastério na Itália, onde misteriosas mortes vem ocorrendo e o pânico toma conta de membros do clero local, crentes de que se trata de um ataque realizado por forças demoníacas. Mas o William suspeita que as motivações são muito mais mundanas, assim como as confusões e desejos que começam a surgir na mente de seu jovem aprendiz.
O Nome da Rosa acabou se tornando um clássico, ganhando um carinho especial no circuito interno de colégios, com presença marcante pelas mãos de professores de história e literatura. Seus temas ligados à vida no medievo ajudam nisso. Eles passam pelas estruturas de poder da igreja, códigos morais, a atuação da Inquisição, o trabalho do clero pela conservação (ou não) do conhecimento, incluindo aqui o trabalho editorial dentro dos monastérios. Mas a força de O Nome da Rosa não vem dessa mera ilustração e reconstituição de um período, mas sim em como ele consegue articular certos aspectos do cinema de gênero, em especial os de crime, entre a investigação e o noir, para dentro desse outro cenário.
Nesse sentido, há uma construção muito clássica de uma narrativa convencional de investigação e que se aproveita disso para traduzir seus signos mais modernos para o contexto da Itália medieval. Há uma atmosfera soturna, que poderia ter vindo das sombras do submundo criminoso de uma Nova York ou Chicago, mas agora é projetada pelos corredores e arredores do monastério. O código de honra das ruas é substituído pela rígida moral da fé católica, que coloca em tensão alguns afetos que brotam por ali.
Há também as estruturas injustas de poderes, que poderiam vir de uma família de mafiosos ou de um departamento policial corrupto, mas aqui emana do alto clero, que detém seu poder a partir da força e dos segredos. Cabe ao experiente investigador, o Sherlock Holmes franciscano - referência nada sutil, inclusive - e seu jovem e confuso Watson entender e sobreviver nesse mundo.
Nesse sentido, Annaud não tem receios em se entregar à uma forte estilização, que ainda vai beber em outras fontes. Se o filme policial é uma referência de muita influência em sua condução dramática e climática, uma espécie de terror gótico também é. Aquele mundo é povoado por espécies de condes dráculas e monstros de Frankstein, presentes nos monges de aparências estranhas. Labirintos e cemitérios também compõem os espaço e figuras misteriosas estão sempre rondando por ali. É como se essas duas fontes de referências, o policial e o terror, refletissem o desenrolar narrativo que fica entre o mundano e o sobrenatural.
E o Baskerville acaba entrando como um contraponto em pessoa à esse mundo. Seu figurino acinzentado destoa das vestes pretas dos monges daquele lugar, sua voz aveludada e eloquente, de fala bem clara e pausada, é oposta aos modos mais estridentes e farsescas. Connery é incisivo em construir um personagem que é claramente superior intelectualmente do que todos ao seu redor, mas precisa conter o orgulho de sua inteligência para se submeter às regras dos jogos de poder dali. Por outro lado, um jovem Christian Slater também exerce um papel de contraponto, mas agora sob a chave da ingenuidade e da descoberta dos horrores e prazeres do mundo, ambos perigosos para quem fez os votos que ele fez.
São nessas articulações e adaptações que O Nome da Rosa dá conta de traduzir honestamente o romance de Eco para as telas. Annaud se utiliza de ferramentas clássicas para evocar um certo clima de ambiguidade, ao mesmo tempo em que mistura gêneros para conduzir uma trama cativante, embalada por boas performances. F. Murray Abraham dando vida à um Inquisidor autoritário dois anos depois de ganhar o Oscar por Amadeus, um jovem Ron Pearlman começando sua coleção de personagens bizarros, o também jovem Christian Slater sendo revelado. E Sean Connery trazendo seu charme para o papel de sábio mentor que desempenhou tão bem em sua carreira.

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