
Martin Eden é um filme sobre paixões inegociáveis, ao mesmo tempo que é esculpido sobre coisas antagônicas.
De um lado Jack London, autor do romance homônimo, norte-americano, literário e de tom romanesco. Do outro, Pietro Marcello, cineasta italiano com um pé no experimental.
Ele foi o responsável por transportar a obra para uma Itália no início do século XX, com todas suas tensões e particularidades. O resultado está sendo exibido nesta reabertura do Cinema da Fundação, com sessões ao longo da semana.
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Não espere que Marcello se coloque impasses que virão a ser solucionados no longa-metragem, pelo menos no entendimento de uma síntese posterior. Os opostos convivem em tela – há um tom de classicismo que a câmera Super 16 mm irá emular, ao mesmo tempo que inserções de imagens de arquivo sentenciam o filme a uma montagem etérea e sugestiva (inclusive, com imagens do clássico Limite, de Mario Peixoto).
Talvez nasça daí um dos trunfos de Martin Eden: a não instrumentalização da sua narrativa política, seja no que isso implica em imagem, seja no que isso implica em discurso. Há uma aura viscontiana aliada a essa experimentação constante que embaça qualquer inserção totalizadora.
O filme passa pela crescente marxista no início do século, sua oposição conceitual ao individualismo e a força gravitacional da realidade dos abismos sociais no capitalismo liberal.
Não deixaria escapar também a decadência da aristocracia europeia e os tensionamentos reminiscentes da sua aura na alta burguesia. É um recorte temporal bem assimétrico se pensarmos em alguma historicidade.
Martin Eden se passa entre os anos 20 e 30, em uma Itália pré-guerra (não sabemos ao certo se a segunda ou primeira), mas ao que parece já gestante do Fascismo.
Martin Eden, agora o nosso protagonista, é quem nos vai guiar neste ambiente de ebulições. Em troca, acompanharemos sua jornada autodidata para se tornar um escritor.
Por mais que o ator Luca Marinelli nos entregue um vigor corpóreo e de avidez, quase inocente, por adquirir conhecimento, Martin Eden é desde o seu primeiro minuto um filme melancólico. Sua inclinação ao choque dramático, ou seja, das rupturas do que primeiro se apresenta como um sonho, é também um grande prenúncio da derrocada do artista.
O personagem é um marinheiro e proletário de formação escolar danificada. Elena, sua musa, é a inserção do elemento romanesco do que mais implicitamente representa sua própria família, que aparecem como modelo ideal de uma burguesia detentora do conhecimento. É o fio romântico que o filme irá sustentar como pulsão primária.
Para concretizar seu destino como escritor eis a jornada nada romântica de Martin Eden. Vamos do seu vislumbre burguês, a contradição de classe, o encontro com o mentor (o amaldiçoado Russ Brissenden) até a sua tragédia anunciada.
Gradativamente não há mais espaço para convivência dos opostos. A câmera deixará de buscar o belo de Baudelaire e os requintes da alta burguesia – até a imagem do mar fica distante para o nosso, inicialmente, marinheiro. As paisagens são agora do campo, das ruínas das cidades e dos comitês proletários. Em certa cena, até o cinema não o encantará mais.
Infelizmente, já é tarde demais. Depois de recusar tudo que desprezava (o que inclui, uma busca emocionante pela ascensão social através do tortuoso ofício de escritor), sua rota parece já ter sido traçada desde o começo.
Martin é engolido por toda indústria cultural e os alicerces capitalistas da sua época (e porquê não da nossa também?). Mas antes de qualquer juízo final, o mar retorna em um plano aberto. Na sua última aparição, o ex-marinheiro se põe a nadar em direção ao pôr do sol.
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