
Nos planos traçados no início do ano pelos Guerreiros do Passo, o dia deste sábado (12) teria sido de confraternização e exaltação do frevo a céu aberto. O palco escolhido para tal momento seria o mesmo que, desde 2005, abriga os professores e alunos nas tardes de sábado durante as aulas gratuitas: a Praça do Hipódromo, localizada na Zona Norte do Recife.
Mas este encontro seria especial. O som mecânico cederia espaço à presença de uma orquestra e os passistas dividiriam o local com integrantes do Homem da Meia-Noite e de outras agremiações amigas. A cadência mais festiva que de costume estava prevista porque o mês de setembro sempre foi sinônimo de celebração para os Guerreiros do Passo. Além do aniversário do grupo ser festejado no dia 1° deste mês, nesta segunda-feira (14), comemora-se o Dia Nacional do Frevo.
Para não deixar passar a data em branco, Eduardo Araújo, pesquisador da história do frevo e um dos fundadores dos Guerreiros, realizou uma live no perfil do Instagram do grupo na última semana relembrando a trajetória e alguns causos que marcaram esses 15 anos.
É bem verdade que desde o último mês de março, com o início e avanço da pandemia do coronavírus em Pernambuco, encontros e espetáculos digitais têm sido primordiais para manter viva a cena cultural.
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Mas, ainda assim, é difícil imaginar uma aula ou apresentação dos Guerreiros do Passo via tela compartilhada. Por isso, decidiam adiar as comemorações para o próximo ano, na esperança de, enfim, conseguirem novamente cair no passo juntos e bem aglomerados.
Enquanto esse dia não chega, os Guerreiros anunciaram uma novidade: a criação do Quintal do Frevo, um espaço que será construído na sede do grupo, no bairro do Hipódromo, destinado à realização de ações de formação de passistas e professores, além de ensaios. "Não vamos parar com o Projeto Frevo na Praça, as aulas vão continuar e a praça sempre será nosso cartão de visita. Mas há um certo tempo que estamos sentindo a necessidade de um outro lugar para outras ações de formação, aprimorar técnicas, treinar e levar esses resultados aos alunos", explica Eduardo.
Uma das filosofias dos Guerreiros vem dos ensinamentos do mestre Nascimento do Passo: a de viver o frevo para além da sazonalidade do Carnaval. Não há necessidade de aguardar os tradicionais encontros de blocos ou a agitação que toma conta de toda a cidade em uma euforia coletiva a partir de janeiro.
Claro que este período momesco é importante para o grupo e os integrantes também caem na festa, mas acreditam, acima de tudo, que o frevo tem que ser valorizado e praticado de janeiro a janeiro. Por isso que, a não ser por uma pausa durante o período de chuva no Recife, as aulas acontecem o ano inteiro.
Sem incentivo financeiro do poder público ou da iniciativa privada, o grupo se mantém há anos com o esforço dos próprios professores. Quem já participou de um encontro na praça sabe bem que a generosidade e calorosa acolhida por parte dos Guerreiros nunca faltaram. Água gelada e sombrinhas são distribuídas entre os cerca de 30 passistas que comparecem. No período pré-carnavalesco, esse número chega a dobrar.
"Em 2012 e 2013 fomos contemplados pelo Funcultura. Foi ótimo, mas depois disso não conseguimos mais. Então a gente tira do nosso próprio bolso, na luta de dar continuidade ao legado do nosso mestre Nascimento do Passo. Fomos alunos dele na Escola de Frevo do Recife. Ele criou uma metodologia de ensino, que preza pela originalidade e individualidade de cada passista, e que seguimos até hoje", pontua Eduardo Araújo.
"Nossa luta também é a de valorizar o passista enquanto artista. O Estado vende muito o frevo como atração turística em suas propagandas, gosta de colocar o passista fazendo acrobacias no aeroporto e em eventos, assim como fazem com os grupos de maracatu e outras expressões populares. Pernambuco parece um paraíso para o artista popular para quem vê de fora... Mas essa não é a realidade."
Uma observação que já aparecia nos discursos do mestre Nascimento do Passo 30 anos atrás. Em entrevista concedida em 1987 à TV Viva, ele afirmou que estava "esses anos todos gritando, pedindo, implorando, e ninguém dá atenção. Mas sempre eu arrumo um jeito de ensinar aqui e ali (...) Sinceramente, se ajuda é a desatenção, foi tudo que tive até hoje", reclamando ainda da falta de repasses diretos aos artistas por parte dos "doutores que são colocados dos departamentos de cultura."
A fala é forte e revela um dos aspectos do caráter político do frevo. Desde seu surgimento, nas ruas, com sua intrínseca relação com a capoeira, o frevo é sinônimo de resistência.
Além de promover ações contínuas do ensino da dança, o grupo também mantém o Laboratório do Passo há sete anos, realizando pesquisas documentais e imagéticas do frevo desde seus primeiros registros. E, assim como a própria história do ritmo centenário, a dos Guerreiros se mescla com as ruas do Recife e Olinda.
Em 2018 os Guerreiros do Passo participaram como convidados oficiais do desfile do Homem da Meia-Noite. Estar dentro da sede antes do calunga sair e seguir a orquestra, acompanhados por milhares de foliões, foi, sem dúvidas, um dos momentos mais marcantes da história do grupo.
Espetáculo retrata o frevo de antigamente
O frevo é, em sua essência, uma manifestação musical e corporal urbana e os Guerreiros fazem questão de manter essa tradição. Além das aulas e da pesquisa, eles também costumam se apresentar com figurinos típicos dos foliões da primeira metade do século 20.
Uma lavadeira, um jornaleiro, um estivador, um capoeirista e até um policial com o cassetete na mão, pronto para reprimir quando há exaltação nas ruas, dançam e encantam através da elegância, do carisma e da leveza dos passistas Lucas Aguiar, Edson Vogue, Limão, Lucélia Albuquerque, Valdemiro Neto, Laércio Olímpio, Joana Rosas, Jamerson Júnior, Cleones França, Jorge Dancan e José Cabral. Um espetáculo nostálgico — mas não saudosista — que remete às icônicas figuras retratadas pelo fotógrafo franco-baiano Pierre Verger em sua passagem pelo Recife nos anos de 1940.
"A ideia dessa apresentação nasceu em 2006, no começo da nossa história. Valéria Vicente, que também foi aluna de Nascimento, estava montando um espetáculo e nos chamou para fazer a abertura. Como no ano seguinte seria celebrado o centenário do frevo, pensamos em algo que resgatasse a origem dessa dança que nasceu nas ruas, pelo povo", lembra Eduardo Araújo.
O projeto foi chamando a atenção da mídia e do público e não saiu mais da agenda dos Guerreiros do Passo. O trabalho de Eduardo no Laboratório do Passo funciona também como complemento da montagem da apresentação já que, com o passar dos anos e das descobertas históricas, novos personagens e passos característicos da época, que hoje já não são mais populares, foram acrescentados. A salvaguarda acontecendo na prática, no corpo do passista, se manifestando nas ruas e praças, em meio aos foliões. Um trabalho necessário e que emociona até os pernambucanos mais avessos ao Carnaval.








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