
Faith, quinto disco do Hurts, é um retorno à forma, mas também um passo adiante. É mais sombrio e melancólico, como o primeiro trabalho, ao mesmo tempo em que soa mais orgânico, mais distante das personas milimetricamente estetizadas que desenvolveram ao longo da carreira. O lançamento marca ainda a primeira década de carreira do duo britânico formado pelo vocalista Theo Hutchcraft e pelo multi-instrumentista Adam Anderson.
Em seu primeiro álbum, Happiness (2010), o Hurts conseguiu deixar muito claras suas intenções e referências. A sonoridade e as letras emulavam o movimento New Romantics e a cena eletrônica dos anos 1980, especialmente bandas como Depeche Mode e Soft Cell. As letras de teor quase sempre melancólico e intimista eram elevadas com as interpretações precisas de Hutchcraft, sempre equilibradas entre a emoção em estado bruto e um certo ar misterioso, quase impenetrável.
A dupla buscou transmitir essa poética também para o campo estético de forma marcante desde o início. Elegantes, com roupa de alfaiataria, cabelos milimetricamente arrumados com gel e óculos escuros, cosmopolistas. Ambos pareciam uma mistura entre um fashionista na semana de moda de Paris e um espião à la James Bond.
Seus trabalhos posteriores, Exile (2013) e Surrender (2015) soavam como continuações naturais desse projeto, porém cada vez mais se aproximando das tendências que dominavam as paradas de sucesso. Ainda que visualmente pudessem ser mais associados a bandas alternativas, canções como Nothing Will Be Bigger Than Us e Some Kind of Heaven foram construídas com a sensibilidade pop perfeita para conquistar as rádios e as pistas, fórmula que vinha sendo aperfeiçoada por DJs/produtores como Calvin Harris (com quem a dupla, inclusive, criou um de seus maiores sucessos, Under Control).
A ambição de criar um álbum marcadamente pop se concretizou com Desire (2017). Mesmo que a voz de Theo ainda garantisse alguma identidade às canções, o desejo em se adequar e serem aceitos por uma audiência mais vasta de alguma forma diluiu algumas das características mais interessantes do duo.
Essa mudança de rumo se refletiu também na receptividade do público: apesar do maior apelo comercial, as canções não emplacaram e o disco vendeu menos de 10 mil cópias na Inglaterra, bem longe das 400 mil de Happiness.
IDENTIDADE
O hiato de três anos deu aos artistas tempo para refletir sobre seus desejos e a direção de sua música. Em uma entrevista recente ao site NME, eles afirmaram que o disco é um retorno à sua essência, conduzido por elementos mais sombrios do pop, como classificaram.
De fato, o trabalho está mais cru e trabalha a complexidade das emoções, sem deixar de lado os sintetizadores e as pistas de dança de mente. Desta vez, porém, a música é menos feita para boates onde os frequentadores estão mais preocupados com postar fotos dos looks do que dançar, e mais para os inferninhos mal iluminados, cheios de desejo, paranoias e excitação, como fica explícito em faixas como Fracutred, marcada por elementos industriais.
Theo Hutchcraft explicou que o disco é fruto, também, de um profundo processo de terapia e essas questões emergem nas temáticas de canções como Voices, Darkest Hour e Liar. Há um sentimento de urgência, quase de opressão nas batidas, na interpretação mais solta e visceral do cantor. "Eu não sinto nada / E não vou parar até eu me dissociar de você", canta, angustiado, em Numb.
A versatilidade de Hutchcraft, que também assina as composições, fica explícita ainda em canções de arranjo mais intimistas, como All I Have To Give, Redemption e White Horses.
Vulnerável e complexo, Faith é um disco que só foi possível pela disposição de seus criadores em se despir da fantasia para encarar a realidade de seus sentimentos. E, mais ainda, de assumirem suas identidades, deixando de lado a preocupação de se encaixar.

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