
JORNAL DO COMMERCIO - Carolina parecia muito apegada a você, que sempre estava com ela, catando papel ou nos lançamentos dos livros…
VERA EUNICE - Minha mãe queria ter meninos, porque não queria que eu passasse o que ela passou. Fazíamos tudo juntas. Ela viajava comigo, não me deixava sozinha. Era corriqueiro na favela as relações de abuso contra as meninas. Comecei a entender mais adulta que ela não queria ter menina por isso. Eu dormi com ela até os meus 18 anos. Ela colocava lamparina e vela em cima de mim para conseguir escrever à noite.
JC - Quando Carolina morou na favela do Canindé você era pequena e viveu aquela situação sob o olhar de uma criança. Como é ler Quarto de Despejo adulta?
VERA - Eu fico tão mexida. Não consigo ler numa sequência. Eu fico pensando que minha mãe sofreu muito. Eu sempre saía para catar papel com a minha mãe e ela vomitava aquela bílis, por isso disse em seu livro que a fome era amarela. Depois que catava, conseguia algum dinheiro e comia, vinham as ideias na cabeça dela. Ela pegava um papel em qualquer lugar e começava a escrever "tem que escrever agora".
JC - Você disse que tem interesse em escrever uma biografia da sua mãe? O que você acha que falta nas que já foram escritas?
VERA - Não sou escritora, sou professora, mas não estou feliz com os registros biográficos. Ou eles não condizem com a verdade ou não colocaram o final da vida dela no Sítio de Parelheiros (SP), depois que ela voltou a ser escritora. Já estou escrevendo uma biografia sobre minha mãe e têm editoras interessadas em publicar. Mas são muitas lembranças, por isso ainda não consigo dizer quando será publicada. Um palestrante disse uma vez que ela bebia. E eu nunca vi minha mãe bebendo. Tomava apenas caracu, que é ovo de pata e Biotônico (Fontoura) pra fortalecer. Também disseram que minha mãe foi casada, Ela teve vários namorados, cada filho de um pai, mas casar não! De jeito nenhum. Disseram, ainda, que minha mãe quando estava nervosa queimava as mãos da gente. Minha mãe era brava, mas nunca queimou os filhos. Essas coisas foram me aborrecendo.
JC - Antes de morrer, ela chegou a dizer o que queria que fosse feito sobre a obra dela?
VERA - Antes de falecer ela escreveu uma carta para mim e entregou à vizinha, Dona Mariazinha. Recebi a carta no dia seguinte ao enterro dela. Dizia pra eu tomar conta do meu irmão, que estava muito doente, para não me desfizer do sítio, para propagar a memória dela, para colocar livros no túmulo dela e para me formar professora.
JC - Você ainda tem essa carta? Conseguiu satisfazer os desejos dela?
VERA - Não tenho mais essa carta porque passou de mão em mão, mas estou tentando reavê-la. Mas sim, fiz tudo o que ela me pediu. Cuidei de meu irmão até o final. Ele já estava muito doente e morreu cinco meses depois dela. Coloquei no túmulo os livros e frases dos escritos dela, poemas grafados no gesso do túmulo. Meu objetivo é colocá-la no patamar que ela merece, como literata. Quero deixar o sítio bem conservado. Lá tem as árvores que ela plantou. Tinha um bar que ela trabalhava, mas fechou. A Prefeitura (de Parelheiros) pediu para deixar o ‘ar de Carolina’ no lugar. Querem que vire um espaço cultural, com saraus e outros eventos.
JC - Carolina começa Quarto de Despejo dizendo que é seu aniversário e que queria comprar um par de sapatos, mas não tinha condição. Ao longo do livro você se queixa que não gosta de ficar descalça. Como é a sua relação com os sapatos hoje? Ficou com mania de comprar?
VERA - (Gargalhada)... O pior que não. Como gente sabe dessa história, eu ganho sapatos o tempo todo. Chega aniversário é sapato, chega Natal é sapato. E boneca também, porque eu nunca tive a boneca dos sonho. Minha mãe era quem improvisava umas pra mim.
JC - Que legado você acha que Carolina Maria de Jesus deixou?
VERA - Vejo muitas mulheres se inspirando nela, empregadas domésticas, mães solo. O nome dela está em bibliotecas, ruas, escolas. As pessoas ficam maravilhados com a história dela. Além disso ela deixou vários inéditos para provar que não foi escritora de um livro só.
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