
“Escrevo poemas, contos, romances. Os poemas são basicamente verdadeiros, o resto é verdade misturada com ficção. Sabe o que é ficção? Ficção é um aprimoramento da vida”. O comentário é do escritor americano Charles Bukowski, numa entrevista concedida em 1970. Dia 16 de agosto de 2020 Bukowski completaria 100 anos. Um centenário pouco lembrado na mídia, embora ele seja um grande vendedor de livros. Sua obra é imensa, continuamente traduzida e disponível. Difícil explicar tanto interesse por um escritor que geralmente não é levado em conta quando se citam nomes importantes da literatura do século 20.
“Recebo muitas cartas sobre meus escritos que dizem: ‘Bukowski, você é tão fodido e mesmo assim sobrevive, eu decidi não me matar. Então de certa maneira salvo pessoas. Não que queira salvá-las: não tenho o menor desejo de salvar ninguém. Estes são meus leitores, entende? Os que compram meus livros, os derrotados, os dementes e os malditos, e tenho orgulho disto” (de uma entrevista de 1981). O próprio escritor encaixava-se no perfil dos que escreviam para ele. Misógino, chauvinista, alcoólatra, anti- -social, sempre disposto ao confronto, Bukowski reforçava a imagem. Apanhava muito do pai (pelo menos três grandes sovas por semana, contabilizou numa entrevista). No início da adolescência a acne tomou seu rosto, a ponto de levá-lo, com 13 anos, ao hospital, onde começou a escrever.
Até os 35 anos bebia para segurar a onda, fez todo tipo de trabalho para se sustentar. A partir de quando se tornou um escritor bem pago, bebia muito mais por ganhar o suficiente para comprar bebida. “Não penso que teria suportado as porcarias dos empregos que tive, em tantas cidades deste país, sem saber que poderia voltar pro meu quarto, beber tudo, e relaxar. Deixar que as paredes se inclinassem e sumisse com o rosto do capataz subnormal, sabendo que compravam meu tempo, meu corpo, por uma merreca, enquanto prosperavam”.
Bukowski foi o lado sombrio da geração beat, caminhava sempre pelo lado mais perigoso da calçada. Seus primeiros escritos, poemas, estão espalhados por dezenas de publicações, às quais ele mandava textos, muitos mimeografados, escrevia compulsivamente. Ernest Hemingway, uma de suas admirações literárias, enfrentava guerras, ia à caça de leões, via as touradas, a vida e a morte se confrontando a todo momento. Foi um símbolo do macho americano. Suicidou-se. Bukowski foi o reverso da moeda. O outro lado do herói americano que, de certa forma, Hemingway ainda é, quase um estereótipo do escritor. A morte para Bukowskli era o inevitável, procurava, à sua maneira, tirar o máximo da vida. Morreu de leucemia aos 73 anos.
Nascido Heinrich Karl Bukowski, na Alemanha (chegou aos Estados Unidos com três anos), para quem a vida era uma tragédia e ele o principal protagonista. Lembra Nelson Rodrigues, em ambos, real e ficção se misturavam. As entrevistas de Bukowski são a continuidade dos seus romances, contos e poemas. Leu muito, mas se lixava para técnicas literárias: “Escrevi Post Offi ce (seu primeiro romance) em noites de bebedeiras, logo depois que larguei o trabalho nos Correios. Tomava um quarto de uísque, algumas cervejas, fumava três ou quatro cigarros e datilografava pelo menos dez páginas, era a meta. Se ultrapassasse, ótimo. Então bebia e datilografava (...) quando acordava tomava dois Alka-Seltzers e ia conferir quantas páginas tinha escrito. Terminei em vinte dias. Não é um clássico, mas é legal”, de entrevista incluída no livro The Mathematics of the Breath and the Way: On Writers and Writing, reunião de ensaios, ficção, e entrevista, compilados por David Stephen para a histórica editora City Lights.
COM CRUMB
A capa deste, e de outros, livro estampa um desenho de Charles Bukowski feito por Robert Crumb, mítico desenhista, cujos trabalhos fazem parte da contracultura dos anos 60. Crumb e Bukowski foram parceiros em histórias de quadrinhos. Crumb ilustrou vários livros de Bukowski, embora fossem bem diferentes. O desenhista melômano, dono de uma imensa coleção de discos. O segundo usava o único disco que tinha, uma sinfonia de Bach, como fundo musical para escrever. Às críticas sobre sua propalada misoginia (exacerbada no livro Mulheres), comentou: “As pessoas que me chamam de chauvinista não conhecem todos meus trabalhos, só escutaram os boatos. Se tivessem lido o corpo total da minha obra, saberiam que amo as mulheres tanto quanto amo a mim próprio”.
Foi um autor pouco lido no Brasil até o filme Barfl y, de Barbet Schroeder, de 1987, com Mickey Rourke e Faye Dunaway, em que ele faz uma rápida participação. O filme teve roteiro assinado pelo escritor, e é sobre ele mesmo, seu alter ego Henry Chinaski. Depois de Barfl y, pelo menos nove títulos sobre ele chegaram ao audiovisual, entre longas, curtas, documentários, ou DVDs em que Bukowski declama seus poemas. Mas mesmo nos Estados Unidos demorou a vender bem, seu maior público estava na Europa. A compilação da coluna Note of a Dirt Man, que escreveu nos anos 60 para o jornal underground Open City, foi seu primeiro livro publicado no Brasil, em 1969, como Notas de um Velho Safado.
Bukowski cativou leitores, tem em catálogo pelo menos oito títulos em português. Difi cilmente chegaria ao Nobel. Sua escrita está longe de ser refinada. É, como diria Nelson Rodrigues, um golfada de vômito, uma espécie de Francis Bacon da literatura. Escrevia porque era impelido a isso, não para ganhar dinheiro, nem elogios: “Sou feito uma aranha tecendo minha teia. Tudo o que sei fazer. Tudo o que fazemos é por instinto natural. Nem sabemos por que estamos fazendo, se a gente soubesse, não faria. Não creio em controle, estudos, aprendizado. Acredito apenas que o que acontece, acontece, e me deixo levar”.
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