Elomar Figueira numa rara entrevista de 2005
Em 30 de outubro de 2005, fui a João Pessoa tentar entrevistar Elomar Figueira. Ele ia ensaiar com o Quinteto da Paraíba, para um concerto que apresentaria no Mosteiro de São Bento, em Olinda, no dia seguinte. Elomar não é chegado a entrevista, mas o pegamos num dia de exceção, almoçamos e conversamos. O papo foi longo, e rendeu uma das melhores entrevistas que já fiz. Ela foi foi publicada no JC, porém, não sei bem a razão, sem assinatura. Assino-a agora, ao republica-la no blog, aproveitando o gancho de uma série de quatro concertos que Elomar apresenta, no Caixa Cultural, de hoje a sábado. José Teles Elomar Figueira de Melo, 68, surgiu para o grande público em 1973, com Nas barrancas do rio Gavião (seu disco de estreia). Sem premeditar, deu origem a uma tendência na MPB, e até hoje é bastante influente. No entanto, no auge da badalação, resolveu voltar para sua Vitória da Conquista, no sertão baiano. Trocou a "cantoria" por peças eruditas. Não dá mais entrevistas para a TV, e muito raramente concede alguma a jornais. Para conversar com Elomar, o JC foi, sexta, até João Pessoa, onde ele ensaiaria com o Quinteto da Paraíba, para o concerto que apresentaria no Mosteiro de São Bento, em Olinda, sábado. Demos sorte, eu e o fotógrafo Alexandre Belém. Não havia ninguém esperando o músico, e o filho João Osmar, quando chegaram no aeroporto da capital paraibana. Os dois não sabiam onde seria o ensaio, nem em que hotel ficariam hospedados. No carro do JC , levamos Elomar e João Osmar para um restaurante. Enquanto Osmar tentava entrar em contato com a produção local, Elomar conversou, à vontade, franco, fazendo algumas revelações surpreendentes, sem se importar com o gravador ligado, e nem com a câmera de Belém, o que não é mesmo do seu feitio. JORNAL DO COMMERCIO - Você lançou o primeiro disco em 1972, mas fazia música desde quando? ELOMAR – Com seis ou sete anos, no São Joaquim, onde fui criado, lá no campo, ouvia no rádio de um tio meu uma música que me impressionava demais. Música erudita. Aos 16 anos, descobri a protofonia do Guarani, na Hora do Brasil. Aos onze eu já compunha, mas o texto chegou mais tarde, aos 15. JC – Sua música é muito original, uma coisa única, como chegou a estes elementos clássicos, ibéricos? ELOMAR – Tenho uma formação complexa. A coisa ibérica, europeia, desde muito cedo leio uma literatura fora de moda, mais cafona, muito cedo descobri a poesia dos monges vagabundos da virada do milênio, a poesia provençal. Também a música que se vinha fazendo na alta idade média, partindo para a renascença. Li muito sobre a alta e a baixa Idade Média. Romance de cavalaria, esgotei todos. Vendo a arte pictórica, Bosch, fui criando um amor por aquela época, que os historiadores, vários, chamam a Idade das Trevas, eu chamo de Idade das Luzes. JC – Nos mosteiros se criava muita arte... ELOMAR – Viveu-se uma bela idade, no que pese a pobreza, o sofrimento. O camponês não dormia em cama, mas tinha fé, tinha valores espirituais. Hoje numa sociedade permissiva como esta, de grande abastança, de um grande progresso tecnológico, se bem que dizimador de valores, houve um certo avanço social, conquistas políticas, embora eu ache que o processo escravagista contemporâneo seja pior do que no passado. Mas é uma sociedade ingrata que não agradece a Deus pela abundância. Em qualquer cafundó do sertão tem antena parabólica, em qualquer barraco nos cafundós da Paraíba tem tudo, pipoca colorida de São Paulo, chicletes, um mini-mercado. JC – Mas aquele dialeto que você cantava nas letras de suas músicas ainda existe no sertão? ELOMAR – Ainda existem uns redutos.Felizmente não é possível se pegar um camponês daqueles, um vaqueiro feito Antenoro e se ensinar a ele, num processo de dez, vinte anos, os valores da língua oficial,do vernáculo. Não, ele fala um dialeto. JC – É verdade aquela história do vaqueiro Raimundo (de Chula no terreiro), que vai para São Paulo e é atropelado enquanto olha para a lua? ELOMAR – Não, ele não existiu, mas te digo uma coisa. Nós, os poetas, somos chamados de vates, porque fazemos vaticínios. Três, quatro anos depois que escrevi aquilo, Raimundinho dos Santos, da Bahia, do grupo Bendegó morreu atropelado quase nas mesmas circunstâncias. Então a ficção que a gente faz acaba virando premonição. JC – Por que você, decidiu voltar para Vitória da Conquista? ELOMAR – Eu já nasci acordado. Minha mãe dizia: este já viu o sol antes de nascer. Muito novo ainda, percebi o que percebo mais ainda hoje. O homem do campo é do últimos representantes de uma sociedade respeitável. Os últimos valores do homem você ainda encontra nesta sociedade, porque na sociedade dos organoides tudo está sendo arrasado, destruído, não há mais a chamada consideração, lá no sertão ainda se usa muito esta expressão. Uma vez um catingueiro me falou: sabe seu doutor quando a consideração acabou? Foi quando a mulher passou a andar escanchada na sela do cavalo. Antes ela andava de lado. Sem querer este catingueiro acertou. JC – Esta perda de valores, tem então a ver com esta onda de corrupção, mensalão, acusações ao PT, etc? ELOMAR – Para isto tenho sempre uma resposta. Nós os poetas puros vivemos a cavaleiro da sujeira política, deste consumo exacerbado. Eu me ponho mais como observador destes fenômenos, sei que o poder corrompe. Não votei no PT, nem em nenhum partido, de agora em diante não vou votar em ninguém, não tenho esperança em quem votar. JC – E os bodes, você ainda cria? O famoso bode Orellana existiu mesmo? (N- o bode Orellana foi um dos mais famoso personagens do cartunista Henfil) ELOMAR – Crio bode há 35 anos. Agora, só crio para comer e ouvir o bodejar. O bode Orellana realmente existiu. Morreu em 1976, uma onça comeu ele. Conheci Henfil numa noite no Rio, quando ele descobriu o bode, a onça. O dia já amanhecendo e ele me disse que eu havia trazido um presente para ele, que tinha um personagem engavetado, Zeferino, mas não tinha encontrado companheiro para ele. Esse bode eu comprei em São Paulo, a um italiano. Ele tinha necessidade de comer capim, palha seca, mas como não havia, comia papel. Uma vez comeu uma nota de 500 não sei o quê do italiano. O bode comia livro. Então Henfil falou que se o bode comia livro então era um bode intelectual, e criou o personagem. JC – E este nome, foi ele que deu? ELOMAR – Não, meus bodes tinham nomes de heróis. Tinha um chamado Fernão Cortez, outro chamado Marco Polo, porque andava demais, era um andarilho, a onça matou esses também. JC – Tem muita onça por lá, na sua terra? ELOMAR – Tem. Nós matamos muitas. Depois o IBAMA chegou e está uma desgraça. Não se pode mais matar. As onças, é tudo com carteira do IBAMA, você não pode atirar. Hoje não mato, até zelo por elas (ri) Olha o IBAMA!! JC – Pela lei matar um peba é crime inafiançável. ELOMAR – Pois é, um horror! Porque é tão gostoso, o peba! Agora por que este povo não descobriu ainda que ecologia foi inventada pelos ricos que destruíram tudo? Os que nadam em dinheiro? Quem inventou a ecologia foi o europeu para a gente não poder fazer mais nada, para não desenvolver, porque quem não polui não desenvolve. Admito que haja uma coisa maneira em termos ecológicos, mas como está aí é uma exacerbação. JC – Muita gente lhe copia, canta suas músicas, só que seu estilo é único. Parece que eles pegam mais a forma do que o conteúdo. Você também pensa assim? ELOMAR – Este aí sabe (aponta para o filho João Osmar).Xangai canta bem. Tem uns que matam minhas músicas, e muito mal matadas. É o seguinte fazem uma leitura errônea de mim. Como se eu fosse criar uma escola para ter seguidores, um projeto. Buffon já dizia, “o estilo é o homem”. Houve também uma leitura por parte da esquerda em torno do texto, sentiam que havia ali um grito humanístico. Sim, havia, mas cristão, não uma coisa de esquerda, de materialismo histórico. Sou cristão fundamentalista, mas não sou religioso. Sou da linha de Lutero, do alvorecer do século 16. Criaram uma certa legenda em torno do meu nome. Sou um vaqueiro tangerino que vem de uma sociedade pastoril, agrícola. Conheci a cidade grande dos urbanoides e voltei para o meu lugar. Canto os valores do homem em relação ao criador, mas a partir da língua de lá. As metáforas que uso são presas a minha realidade: a chuva, o rio, a cheia, a boiada, o vaqueiro, a canícula, a retirada, é por essas e outras que me puseram numa espécie de névoa. Nunca gostei muito de ser aplaudido. Acho até uma coisa meio ridicularizante. Em várias plateias com as quais tenho mais afinidade peço para ninguém bater palma enquanto canto, só depois, e aí podem rachar a mão de bater. Mas na terceira música surgem as palmas, parece que ficam com a mão coçando. JC – Como é o seu dia a dia no sertão? ELOMAR – Quando morava na Gameleira do Gavião, em Conquista, era música, revisar o que passavam para o computador, depois montava no cavalo e ia para o mato caçar onça, antes do Ibama, paca, tatu, cotia, zabelê, que eu gostava tanto. Mas antes de 1992, do Ibama. Agora eu mudei lá para dentro, na Lagoa dos Pássaros, no fundo do semiárido, na base da chapada diamantina, numa pleniplanície, bela, extensa, deserta, numa faixa proterozóica. Lá fundei uma escola de música para meninos de seis a onze anos, um coro só para cantar antífonas e louvar Nosso Senhor Jesus Cristo. JC – Mas lá se consegue ficar livre dessa música popularesca que toca no Nordeste inteiro? Esse pseudoforró, Mastruz com Leite, Limão com Mel? ELOMAR – Isto é uma espécie de gripe do frango. Antes havia a gripe espanhola, a axé e os carnaval fora de época. Esse horror já invadiu tudo, e é sem retorno. Faz parte de um processo globalizante, pseudocultural, que quer desmantelar tudo, acabar com este arquipélago cultural chamado Brasil, pelo gosto destas televisões o Brasil terá um sotaque só, o carioca. JC – Sua música está cada vez mais erudita, quando você começou a mudar de canções para estas peças mais longas? ELOMAR – Lá em casa em partituras tenho 18 horas de música. Isto está dividido em óperas, sinfonias, galopes estradeiros, antífonas, uma música mais culta. Desde que comecei a fazer o cancioneiro passei a escrever estas peças mesmo sem saber ainda ler partitura. Hoje escrevo à mão, e pago para um pessoal passar para o computador, João Osmar é que faz as revisões. As canções, a gente começa com a mamadeira, depois passa a comer comida pesada, feijão, carne. Meu cancioneiro é a mamadeira, coisa da infância. Você tem que crescer em tudo na vida, então cheguei às antífonas, à sinfonia, é outro recado que você dá. JC – Você tem algum plano de lançar DVD? ELOMAR – Não, porque sou anti-imagético. Dei entrevista à televisão até uns 15 anos atrás. A televisão é um horror, uma máquina banalizadora. Ela quer se passar por uma máquina salvadora, aquele que não passar por ela está perdido, vai pro inferno. Então não dou entrevista. Se fizerem, apagam a fita, ou meto um processo. Me tornei anti-imagético quando vi o caráter, o patamar, o nível da televisão que se faz aqui e no resto do mundo. É uma coisa grosseira, vazia, a imagem se sobrepõe ao texto. O rádio, ou a palavra escrita ainda vai. JC – E shows (corrijo para apresentações.Elomar não gosta de termos em inglês), tem feito também no exterior? ELOMAR – Já me apresentei na França, na Inglaterra, Alemanha, Portugal, no Caribe. recebi convites para voltar mas não me interesso. Cantar só para os quem entende a gente. Ainda mais eu , com esta carga pesada da variante linguística, subdialetal. Na Alemanha, como o alemão é mais erudito, até entenderam, uma moça lá fazia a versão antes das letras. JC – A que você atribui seu talento para a música, já que não vem de uma família de músicos? ELOMAR – Na família de Gláuber Rocha (também de Vitória da Conquista,são primos distantes) também não havia cineastas e ele se tornou um. A música me vem de longe, de um cruzamento de um gen lá da sétima ancestralidade, um gen vagabundo que, de repente, surge e faz o individuo ter jeito para as artes. Confiram Elomar, em Campo branco, do espetáculo Cancioneiro: https://www.youtube.com/watch?v=mT5LT64RasM