EMPODERAMENTO E RECOMEÇOS | Notícia

A história de Vanusa Holanda e de como o empreendedorismo pode encerrar o ciclo de violência doméstica

Mulheres mudam de vida com independência financeira obtida em pequenos negócios, desenvolvidos com apoio de programas do poder público e do Sebrae

Por Raphael Guerra Publicado em 09/05/2025 às 9:00 | Atualizado em 09/05/2025 às 9:20

O amor pelas artes e cores começou cedo na vida de Vanusa Holanda. Com um pincel e várias ideias na cabeça, ela desenvolve desenhos e pinturas que se transformam em quadros, estampas de camisas e canecas - sem contar a criação de velas aromáticas - um sucesso em seu comércio virtual.

Mas por muito tempo o talento da publicitária e artesã de 56 anos, moradora do Recife, sofreu obstáculos diante de casamentos marcados por agressões psicológicas e medo. Foi por meio do empreendedorismo e da persistência que ela chegou à independência financeira, quebrou os ciclos de violência doméstica e mudou o próprio destino, servindo de inspiração e ajudando outras mulheres com histórias bem semelhantes.

Os pequenos negócios - desenvolvidos com apoio de programas de prefeituras, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e de entidades ligadas aos direitos humanos - têm sido fundamentais para que as mulheres vítimas de violência doméstica/familiar consigam atingir a independência financeira. Não só isso: compartilhando histórias e apoio, criam forças para denunciar seus agressores à polícia e para recomeçar um novo capítulo da vida - agora sem ninguém para dizer o que elas podem ou não fazer.

Os desafios e a vitória de Vanusa

Para explicar como Vanusa chegou à independência financeira e como passou a ajudar outras mulheres vítimas de violência doméstica/familiar é preciso voltar ao tempo e relembrar passagens difíceis.

No primeiro casamento, Vanusa passou a trabalhar na agência de publicidade do marido. Mesmo sem formação acadêmica, a criatividade dela contribuía para novas ideias, que eram acolhidas pelos clientes.

"Senti a necessidade de estudar para tentar melhorar a situação da agência, mas meu marido não permitia. Achava que mulher não tinha que estudar, porque iria ‘bater as asinhas’. Sofri muito abuso psicológico nos anos que passei com ele, mas não tinha coragem de me separar porque achava que não ia conseguir me manter, com dois filhos. Hoje vejo que eu que mantinha a família, com mais ideias e artesanatos", disse.

Ela contou que, nas vezes em que falou em separação, sofreu xingamentos e humilhações. "Ele dizia que eu não ia encontrar outra pessoa, que ninguém ia me querer, que eu era velha."

Apesar das constantes violências sofridas, enquadradas na Lei Maria da Penha, Vanusa não procurou ajuda da polícia nos cerca de 15 anos de relacionamento - algo ainda comum, independente de classe social, porque muitas mulheres não se reconhecem como vítimas dentro de casa.

Em Pernambuco, somente no primeiro quadrimestre deste ano, 18.633 mulheres prestaram queixa de violência doméstica/familiar. O número cresce a cada ano graças às campanhas de conscientização e circulação de informações sobre os mais variados tipos de agressões, que não são necessariamente físicas - mas que podem deixar marcas profundas. (Veja arte mais abaixo detalhando os tipos de violência previstos na Lei Maria da Penha)

Vanusa afirmou que só teve coragem de se separar do marido após conseguir um emprego no Centro de Artesanato de Pernambuco, localizado no Bairro do Recife.

"Fui contratada para fazer o cadastro de novos artesãos. Nesse período, conheci muita gente, mulheres vítimas de violência doméstica e que precisavam de emprego para não depender mais dos companheiros. Foi lá também que conheci meu segundo marido, que é artesão", relatou.

A artesã também decidiu que iria cursar marketing e, aos 44 anos, se formou. A celebração foi ainda maior por ter sido a laureada da turma - reconhecimento pelo esforço redobrado para estudar, trabalhar e cuidar dos filhos.

Apesar disso, o segundo casamento também não foi fácil para Vanusa. "Ele parecia muito apaixonado, mas era machista. E isso começou a evoluir para uma violência psicológica", relatou.

"Ele era cinco anos mais novo. Dizia que eu estava engordando, que eu estava envelhecendo. Entrei em um processo depressivo, mas tinha medo de sair do relacionamento, porque eu estava com 45 anos e tinha uma filha bebê para criar na época. As atitudes violentas dele começaram a evoluir para gritos. Uma vez ele jogou um carregador de celular na parede, comecei a ficar com medo. Tudo era motivo para explosão", complementou.

Nesse período, a filha do meio, fruto do primeiro casamento, entrou para a universidade e começou a participar de rodas de conversas feministas. Foi o primeiro passo para o destino de Vanusa mudar.

"Uma vez ela trouxe um panfleto da Secretaria da Mulher mostrando atitudes que são violência, como falar da roupa que a mulher está usando, reclamar de determinados comportamentos. Comecei a refletir. É muito difícil para a pessoa que sofre violência entender que é um ciclo que só tende a piorar. Eles [agressores] não vão mudar porque você quer. Eles foram educados assim. Nesse tempo, percebi que eu não estava só. Outras mulheres passavam por situações semelhantes", disse.

A secretária da Mulher do Recife, Glauce Medeiros, reforçou que muitas mulheres não se identificam como vítimas de violência doméstica, por isso a importância da informação. "Esse tipo de violência atinge todas as classes, independentemente da questão econômica. Mas, na maioria das vezes, ocorre com as mulheres pobres e pretas."

Pequeno negócio garantiu independência de Vanusa

ACERVO PESSOAL
"Me fortaleço e fortaleço outras mulheres a procurarem apoio e a criarem seus próprios negócios", afirma Vanusa Holanda - ACERVO PESSOAL

A virada de chave na vida de Vanusa aconteceu em meio à pandemia da covid-19. Em 2021, ela decidiu reativar uma conta no Instagram chamada “Essa sujeita”, criando uma marca autoral e voltada para o empoderamento de mulheres.

Nesse período participou de um curso gratuito de moda autoral no Sebrae, onde recebeu capacitação para desenvolver o próprio negócio e fez contato com outras mulheres, compartilhando ideias e histórias.

Para se ter uma ideia, nos últimos cinco anos, 16,9 milhões de mulheres e 3,8 milhões de CNPJs com mulheres sócias ou proprietárias ativas receberam atendimento do Sebrae no País.

Em geral, o perfil das mulheres que procuram capacitação no Sebrae envolve a vulnerabilidade econômica, baixa escolaridade e dependência financeira dos companheiros.

"Muitas são chefes de família e buscam no empreendedorismo uma alternativa para alcançar autonomia e recomeçar a vida. O Sebrae oferece capacitação, apoio técnico e incentivo à autoestima, ajudando a transformar habilidades em renda e promover independência", explicou Priscila Lapa, gerente de Políticas Públicas do Sebrae Pernambuco.

O "Essa sujeita" começou a ganhar forma, mais profissional, se apresentando como uma "marca pernambucana, criativa e ativista de empoderamento feminino". Com cores e frases de impacto destacando a força das mulheres, os seguidores se multiplicaram, assim como as vendas.

DIVULGAÇÃO
Todas as estampas são criadas pela artesã e tem o empoderamento feminino como foco - DIVULGAÇÃO

A principal fonte de renda de Vanusa, hoje, é por meio da produção de sua marca autoral. O medo da dependência financeira, atrelada a casamentos, logo ficou para trás.

"Esse trabalho para mim é meu sustento, mas também é terapêutico", comemorou.

Vanusa conta, atualmente, com outras quatro mulheres - que já foram vítimas de violência doméstica - em parcerias para produção dos produtos vendidos nas redes sociais e em feiras espalhadas pelo Estado. Na semana passada, por exemplo, fez sucesso no Festival Espiral, que ocorreu no Parque da Tamarineira, Zona Norte do Recife.

E promete não parar por aí. Ela quer inspirar mais mulheres. Não só na criação dos próprios negócios, mas a cobrarem o básico: respeito.

DIVULGAÇÃO
Velas aromáticas especiais, vendidas na página "Essa sujeita" também fazem sucesso entre as mulheres - DIVULGAÇÃO

Iniciativa do Sebrae ajuda mulheres a empreender

Toda história é única, assim como a de Vanusa. Mas situações que ela passou até conquistar a liberdade emocional e financeira são vivenciadas, diariamente, por muitas mulheres em todo o País. É por isso que ela fez questão de compartilhar o relato.

"Me fortaleço e fortaleço outras mulheres a procurarem apoio e a criarem seus próprios negócios. Meu foco é o empoderamento feminino", definiu.

Gerente de Políticas Públicas do Sebrae Pernambuco, Priscila Lapa reforçou que a entidade conta com iniciativas para mulheres que são ou já foram vítimas de violência doméstica.

Segundo ela, funciona como um programa de capacitação empreendedora e apoio à autonomia financeira, com o objetivo principal de romper o ciclo de dependência econômica que muitas vezes mantém as mulheres em relacionamentos abusivos.

"No caso específico de Pernambuco adotamos práticas de ações como cursos de empreendedorismo com foco na criação e gestão de pequenos negócios; oficinas práticas sobre finanças, marketing, vendas e formalização de empresas; mentorias e consultorias individuais, conduzidas por especialistas do Sebrae; feiras de empreendedorismo feminino, onde as participantes expõem e vendem seus produtos, ganham visibilidade e experiência de mercado", disse.

DIEGO NIGRO/ACERVO JC IMAGEM
Priscila Lapa, gerente de Políticas Públicas do Sebrae Pernambuco, reforça que mulheres que desejem empreender devem procurar capacitação adequada - DIEGO NIGRO/ACERVO JC IMAGEM

Segundo Maria Eduarda Rocha, gestora do programa Sebrae Delas, as mulheres interessadas podem participar dos cursos e atividades acessando o portal Empreendedorismo Feminino do Sebrae (sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/empreendedorismofeminino), onde há capacitações gratuitas, cursos ao vivo, mentorias e conteúdos para quem quer empreender ou já tem um negócio.

Uma sugestão é seguir o @sebraepe nas redes sociais, onde são divulgadas regularmente novas turmas, eventos, feiras e oportunidades exclusivas para mulheres.

Há, ainda, parceria com o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que prevê a realização de palestras e oficinas com o público de mulheres em vulnerabilidade. O nome da iniciativa é Projeto MP Empodera.

Projeto "Tá com elas" oferece mentoria às mulheres

Outra iniciativa interessante é da Prefeitura do Recife. Em 2023, foi lançado o programa "Tá com elas", voltado às mulheres empreendedoras e tomadoras do Crédito Popular do Recife - cujo valor é variável e tem o objetivo de impulsionar pequenos negócios.

No "Tá com elas", mentorias individuais dão orientações com a construção de planos de negócios, além do esclarecimento de dúvidas sobre precificação dos produtos e serviços, fluxo de caixa e até marketing digital.

"É uma forma de promover oportunidades para a autonomia financeira, por meio dos pequenos negócios. Mais de 600 mulheres já participaram do projeto. Observamos que mais de 77% delas viveram ou estavam em situação de violência doméstica", afirmou a secretária municipal da Mulher, Glauce Medeiros.

Divulgação
Secretária da Mulher no Recife, Glauce Medeiros explica que muitas vezes as mulheres oferecem bons serviços, mas não sabem indicar preços adequados, por exemplo - Divulgação

A gestora contou que, em geral, as mulheres que participam do projeto investem na criação de negócios voltados para alimentação, moda, artesanato ou outros serviços (massagem/unhas). As inscrições podem ser feitas pelo aplicativo Conecta Recife.

O programa "Tá com elas" destacou-se ao ficar entre os 50 primeiros colocados no Global Mayors Challenge da Bloomberg, competindo com 630 projetos de todo o mundo.

Thiago Lucas/ Design SJCC
Violência contra a mulher - Thiago Lucas/ Design SJCC

Na Prefeitura de Olinda, vagas para mão de obra de mulheres vítimas de violência

Outra iniciativa, desta vez da Prefeitura de Olinda, promete ajudar mulheres a romperem o ciclo de violência. Um decreto, assinado pela prefeita Mirella Almeida no começo da semana, determina que 8% de vagas de contratações de serviços de mão de obra terceirizada sejam reservadas às vítimas de violência doméstica.

O decreto municipal estabelece ainda que esse público tenha vantagem em caso de empate em licitações, no âmbito da administração pública direta e indireta de Olinda.

A regra da reserva dos 8% de vagas aplica-se a contratos com quantitativos mínimos de 25 colaboradores. "Para contratos com um número inferior a vinte e cinco colaboradores, a exigência do percentual mínimo poderá ser dispensada, mediante justificativa fundamentada da área técnica", explicou a gestão municipal.

Em paralelo, a prefeitura disse que, periodicamente, realiza oficinas e capacitações voltadas às mulheres que querem empreender, fortalecendo o empoderamento delas. Nos encontros, elas aprendem estratégias de vendas e divulgação e dicas para estruturar o próprio negócio. Os cursos são divulgados pelo site da prefeitura (olinda.pe.gov.br) e redes sociais. 

Compartilhe