IA na Saúde: entre o futuro que chegou e a essência que não pode ir embora
Tecnologia avança entre automação e diagnósticos inteligentes. Nesse sentido, o desafio é preservar o que nenhuma máquina entrega: vínculo e atenção
Clique aqui e escute a matéria
A tecnologia avança, os algoritmos se tornam cada vez mais precisos e a inteligência artificial (IA) se espalha pela saúde. Ainda assim, e muito além da eficiência e da automação, permanece a questão que inquieta e mobiliza profissionais: quem continuamos sendo quando deixamos a máquina nos ajudar?
E mais: como integrar inovação sem perder de vista aquilo que sustenta o cuidado, como tempo, vínculo e humanidade?
Foi com esse espírito que nós, do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (SJCC) realizamos, na última quarta-feira (3), o evento "IA: o futuro do cuidar é humano", no Auditório Graça Araújo, na sede da empresa, no bairro de Santo Amaro, área central do Recife. A proposta foi reunir especialistas para discutir o que muda, o que permanece e como a tecnologia pode fortalecer, e não diluir, a essência humana do cuidado.
O encontro contou com os patrocínios da Afya, Roval, Hospital Jayme da Fonte, Lafepe, Endogastro e HospitalMED, além do apoio do Governo do Estado de Pernambuco e da Prefeitura do Recife.
Ao longo deste ano, participei de congressos, jornadas científicas e eventos pelo País que colocaram a inteligência artificial no centro do debate da saúde. Nessas imersões, pude ver de perto como a IA passou a compor o cotidiano de gestores, profissionais e pesquisadores, e como ela tem provocado reflexões importantes sobre ética, humanização e a prática clínica.
Foi desse movimento (e da necessidade de aproximar o público dos temas que observo na minha rotina de cobertura jornalística) que surgiu o insight de organizar um encontro próprio. Por isso, na curadoria e na mediação do evento, reunimos quatro convidados que representam diferentes dimensões dessa transformação: gestão estadual, gestão municipal, prática clínica e educação médica.
Com essa configuração, percebemos que a inteligência artificial já não pertence mais à ficção científica. Passamos a reconhecer que a inovação sem cuidado não sustenta a saúde. E por outro lado, o cuidado com inovação pode transformar. Basta vermos que a IA está nos fluxos assistenciais, na regulação, nos exames, na predição de risco e até na educação médica. Mas, segundo todos os palestrantes, o ponto central não é substituir profissionais, e sim devolver tempo a eles.
Como sintetizou o médico clínico Marcos Villander, diretor da Sociedade Pernambucana de Clínica Médica (SPCM), "medicina não é foto; medicina é filme". A IA, ao assumir tarefas repetitivas, permite que o profissional volte a acompanhar esse filme: o percurso, a história e a singularidade de cada paciente.
Gestão e governança: quando a tecnologia organiza o sistema
O avanço da IA na saúde só se sustenta quando existe governança e integração de dados. Pernambuco e Recife mostraram, durante o nosso evento, que isso é possível e já está em curso.
Pernambuco: da dependência do papel à Rede Estadual de Dados
A secretária de Saúde de Pernambuco, Zilda Cavalcanti, lembrou que, em janeiro de 2023, áreas críticas como o trauma do Hospital da Restauração, na área central do Recife, ainda funcionavam com prontuários em papel. Pacientes circulavam pela rede sem que seu histórico pudesse acompanhá-los.
A virada veio com a implantação da Rede Estadual de Dados em Saúde (Redes), que hoje integra informações de 11,7 milhões de pacientes, 82 milhões de diagnósticos e 39 milhões de prescrições. Com o prontuário único, médicos têm acesso imediato à trajetória do paciente, inclusive em intercorrências graves.
Nesse sentido, a IA tem sido usada para organizar processos jurídicos e financeiros, para aumentar exponencialmente a produtividade das auditorias. A tecnologia também tem apoiado a telesaúde, com soluções como TeleNeuro e TelePsiquiatria, que resolvem até 50% dos casos sem deslocamento de longas distâncias, o que garante equidade no atendimento.
Recife: prevenção, predição e acesso guiado por dados
Na capital, a secretária de Saúde Luciana Albuquerque destacou o papel do Conecta Recife, que reúne serviços digitais e soluções preditivas. Entre elas:
- Absense (overbooking inteligente): 96% de assertividade, mais de 300 mil vagas reaproveitadas e economia de R$ 21 milhões.
- Ferramenta de prevenção à violência doméstica, que identifica padrões semânticos no prontuário eletrônico e aciona alerta para equipes de saúde.
- PrevMAMA, que usa IA para identificar risco elevado de câncer de mama a partir de marcadores do hemograma, permitindo rastreamento personalizado.
Prática clínica: o copiloto que amplia a precisão e reduz erros
Na assistência, a IA aparece como suporte ao raciocínio clínico e à tomada de decisão.
Ferramentas como o NoHarm, usado em Pernambuco, analisam prescrições e emitem alertas automáticos sobre interações e erros potenciais, o que é uma proteção importante para pacientes e profissionais, especialmente em ambientes de emergência.
Diagnóstico, triagem e acompanhamento
O endocrinologista Luciano Albuquerque, editor do Afya Endocrinopapers e preceptor da Residência em Endocrinologia do Hospital das Clínicas, da Universidade Federal de Pernambuco, apresentou exemplos concretos.
Ele destacou que a IA leva a um diagnóstico mais rápido, ao interpretar eletrocardiogramas com precisão máxima. Na oncologia, a tecnologia possibilita, quando usada corretamente, a uma redução de erros na detecção de metástases em até 85%.
Já na triagem em retinopatia diabética, há acurácia de 100% para excluir casos que não precisam de especialista (oftalmologista). E para a adesão ao tratamento, assistentes virtuais aceleram o ajuste de doses de insulina para melhorar o controle glicêmico.
Humanismo inegociável: o que nenhuma máquina substitui
Apesar do avanço tecnológico, há um consenso: a IA é ferramenta, mas a direção é humana. Com isso, ao abordar o valor da escuta, do toque e do vínculo, o médico clínico Marcus Villander reforçou que a clínica é, antes de tudo, relação. É valioso o tempo dedicado ao paciente: na escuta profunda, na leitura de silêncios, no exame físico. É aí que nasce o diagnóstico mais preciso.
Nesse contexto, a secretária Zilda Cavalcanti resumiu bem, ao se referir a uma frase do professor Fernando Buarque: "A inteligência artificial tira o trabalho desumano do ser humano". Com essa fala, ela deixa claro que a tecnologia, aoliberar profissionais das tarefas mais mecânicas, abre espaço para desenvolver habilidades essenciais como empatia, comunicação, clareza e colaboração.
Os desafios éticos e culturais
Os especialistas lembraram que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) exige rigor e consentimento no uso de dados sensíveis. Além disso, todo resultado gerado por IA requer auditoria humana.
O maior desafio é cultural: fazer as equipes aderirem às novas ferramentas e ampliar a literacia digital, especialmente entre profissionais mais vulneráveis.
Assim, o encontro reforçou que o futuro da saúde não está em escolher entre tecnologia ou humanidade, mas em fazer com que uma fortaleça a outra.
A IA ajuda a organizar o sistema, ampliar acesso, prever riscos, apoiar decisões e reduzir erros. Mas a escuta, o vínculo e o olhar clínico seguem insubstituíveis. O futuro do cuidado é tecnológico. Mas, acima de tudo, continua sendo humano.
Cinthya Leite é jornalista especializada em saúde há 23 anos no JC, mestre em Saúde da Comunicação Humana pela UFPE e tem especialização em Gerontologia pela Estácio.