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Juramento, jaleco e gestão: os desafios de empreender na medicina e as iniciativas que apontam soluções

Faculdades e profissionais de saúde começam a romper o tabu da gestão e mostram que é possível empreender na medicina com ética, inovação e propósito

Por Cinthya Leite Publicado em 07/06/2025 às 19:03 | Atualizado em 07/06/2025 às 19:52

O Brasil forma, todos os anos, milhares de médicos. Dados do Conselho Federal de Medicina (CFM) mostram que, pelo menos, 35 mil novos profissionais obtêm o registro profissional por ano, o que ocorre após a colação de grau. Muitos deles saem das universidades prontos para cuidar de vidas, mas inseguros para gerenciar as suas próprias - tanto do ponto de vista financeiro quanto do planejamento de carreira. Falta conhecimento em finanças, gestão, inovação e, sobretudo, empreendedorismo. E sobram incertezas.

Esse retrato foi traçado em uma pesquisa de mestrado realizada pelo médico Jamal Sobhi Azzam, realizada durante mestrado na Fundação Getulio Vargas (FGV). O trabalho aponta um perfil do médico brasileiro com poucas habilidades de gestão e baixa iniciativa empreendedora, resultado de diversos fatores, especialmente a formação acadêmica. 

É como se, no quesito gestão, esses profissionais dessem um salto no escuro com o registro do Conselho Regional de Medicina (CRM) na mão.

A pesquisa de Jamal, intitulada Habilidade de Gestão e Iniciativa Empreendedora do Médico Brasileiro, revelou um cenário alarmante. Apesar de mais de 90% dos médicos reconhecerem que não receberam preparo administrativo durante a graduação, praticamente todos consideram fundamental a introdução da educação empreendedora nas faculdades de medicina.

THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC
THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC - THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC

Os números da pesquisa de Jamal expõem um abismo: mais da metade dos médicos não tem intenção de abrir um negócio nos próximos cinco anos. Muitos encaram o consultório não como empreendimento, mas como "ganha-pão". Aproximadamente 60% admitem que, se deixassem de atender, seu negócio fecharia.

Há ainda questões mais profundas: um quarto dos médicos prioriza o "sacerdócio" da profissão, o que, embora digna, muitas vezes se traduz em despreparo para lidar com os desafios econômicos da carreira.

Aliar conhecimento médico com visão estratégica

"Falar sobre finanças, marketing ou mesmo sobre a gestão de um consultório privado parecia, durante muito tempo, quase uma afronta aos princípios da identidade médica. A medicina tem sido vista historicamente como um sacerdócio, em que o compromisso com o cuidado se sobrepõe a qualquer discussão sobre remuneração ou sustentabilidade do trabalho médico", reflete o psiquiatra e psicoterapeuta Amaury Cantilino, doutor em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento.  

Ele ressalta que essa visão, embora tenha raízes nobres, acabou por produzir um efeito colateral: muitos médicos saem da faculdade altamente capacitados do ponto de vista técnico, mas absolutamente despreparados para lidar com os desafios práticos da vida profissional.

RENATO RAMOS/JC IMAGEM
Amaury Cantilino se dedica a diversas frentes que dialogam diretamente com uma visão ampliada da carreira médica - RENATO RAMOS/JC IMAGEM

Nesse universo, muitos médicos se veem divididos: por um lado, a necessidade real de sustentar um padrão de vida digno, de garantir segurança para suas famílias, de gerir consultórios que sobrevivam às suas ausências; por outro, o medo de parecerem ambiciosos demais, de serem acusados de colocar o dinheiro acima do cuidado. 

"A graduação é sólida ao abordar o funcionamento do corpo humano, os protocolos clínicos, a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), e mais recentemente tem avançado em aspectos como comunicação, empatia e relação médico-paciente. No entanto, permanece um vazio quando se trata de temas ligados à iniciativa privada – como tributação, administração, legislação trabalhista e estratégias de gestão."

Além da atuação clínica, Amaury se dedica a diversas frentes que dialogam diretamente com uma visão ampliada da carreira médica. Ele atende em consultório, ministra palestras e cursos voltados à formação e à atualização de médicos, além de liderar o projeto "Novos Papers Psiquiatria", uma iniciativa voltada à disseminação crítica e acessível do conhecimento científico na área. É uma trajetória que ilustra um novo perfil de profissional que, sem abrir mão da ética e do cuidado, busca autonomia, inovação e sustentabilidade na prática médica.

Nesse cenário, Amaury diz ver surgir uma nova geração de médicos. "São jovens profissionais que compreendem que empreender, comunicar com clareza, organizar serviços de forma eficiente e buscar viabilidade econômica não diminuem o valor ético da atuação médica. Pelo contrário: isso pode ser justamente o que sustenta uma prática de qualidade." 

Ele acrescenta que o desafio é fazer esse trabalho com responsabilidade, integridade e consciência do impacto que a medicina tem na vida das pessoas.

O depoimento de Amaury ilustra o quanto o cenário atual exige que os médicos, além de terem conhecimento técnico, desenvolvam habilidades empreendedoras, seja para gerir consultórios e clínicas, seja para inovar em soluções de saúde. E esse preparo pode começar desde os primeiros anos da graduação, quando ainda se formam as bases da identidade profissional.

THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC
THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC - THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC

Inovar para cuidar 

É nesse contexto que se destaca o trabalho desenvolvido pela Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), localizada na Imbiribeira, Zona Sul do Recife. Desde 2019, a instituição mantém a FOZ, um centro de inovação especializado nas áreas de saúde e educação. O objetivo é claro e direto: inserir os estudantes de medicina e demais cursos da instituição em uma cultura de inovação, gestão e empreendedorismo.

O gestor da FOZ, Philippe Magno, conta que o centro nasceu de uma demanda real: a constatação de que egressos saem de suas faculdades para abrir consultórios e não têm preparo para a função de gestores. "A FOZ foi criada justamente quando houve o boom de startups. Então, a gente percebeu o papel do empreendedorismo como agente transformador da sociedade — e também da saúde." 

NOBERTO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Objetivo da FOZ é claro e direto: inserir os estudantes de medicina e demais cursos da FPS em uma cultura de inovação, gestão e empreendedorismo - NOBERTO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO

Na visão dele, o novo papel da graduação de medicina não é formar investidores. "O que a gente quer também é desenvolver consciência financeira, para que esses profissionais não se tornem reféns do dinheiro nem do trabalho ao longo da vida. Ser médico é uma missão de vida, e precisa haver planejamento." 

A FOZ atua em camadas. A primeira é o Talks, no Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (Imip).  Trata-se de um encontro mensal que apresenta palestras curtas sobre inovação e empreendedorismo. "Muitas vezes é o primeiro contato dos alunos de medicina com esse universo", diz Philippe. 

A segunda camada são os módulos optativos, voltados a empreendedorismo e inovação. As aulas são semanais, e os estudantes aprendem sobre gestão, transformação digital, contabilidade, finanças, comunicação e marketing.

A proposta é trabalhar as habilidades básicas que um empreendedor deve ter. Os encontros são mediados por especialistas. "Ou seja, quem fala não é o médico para os estudantes — quem ensina são pessoas que atuam diretamente na prática. Por exemplo, um contador que trabalha com saúde é quem dá a aula sobre contabilidade", informa o gestor da FOZ. 

O objetivo não é formar o estudante de medicina em contabilidade ou gestão financeira. Ele precisa entender o básico, para saber do que realmente precisa e em que momento. "Isso é uma atividade de sensibilização, que auxilia muito na formação, já que o curso de medicina é muito técnico e não aborda esses temas normalmente."

Os módulos optativos, como o de empreendedorismo, são oferecidos semestralmente. "A gente abre 60 vagas por semestre — e essas vagas esgotam rapidamente. A gente tem uma demanda reprimida. Só que ainda precisamos resolver um ponto importante: a evasão ao longo do módulo."

A desistência ocorre, segundo Phillipe, por questões que dificultam a conciliação do módulo com as demandas diversas de outras atividades obrigatórias do curso. "O interesse é real. Eles querem aprender sobre empreendedorismo, mas temos que trabalhar para evitar essa evasão."

NOBERTO JUNIOR/DIVULGAÇÃO
Gestor da FOZ, Philippe Magno diz atividades de sensibilização auxiliam muito na formação, já que o curso de medicina é muito técnico e normalmente não aborda temas de empreendedorismo - NOBERTO JUNIOR/DIVULGAÇÃO

Da sala à startup: o poder de transformar ideias em soluções

A FOZ comanda ainda o Startup Way Health. A 6ª edição começou na sexta-feira (6) e termina neste domingo (8). O evento reúne estudantes e profissionais interessados em desenvolver habilidades criativas e empreendedoras. O encontro conta com workshops e mentorias que desafiam os participantes a repensarem a forma como desenvolvem seus projetos.

"A programação conta com temas de relevância no mundo do empreendedorismo, como big idea, Lean Canvas e design thinking. Neste evento, a missão é gerar negócios inovadores a partir de problemas da saúde. Nós orientamos e estimulamos os participantes a transformarem as dificuldades em desafios. Eles formam times e, a partir do que traçam, começam a desenvolver soluções", comenta Philippe. 

Apoio do Sebrae-PE

O Startup Way Health é idealizado em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Pernambuco (Sebrae-PE). No domingo, ao fim do evento, costumam surgir startups, ainda em estágio inicial, que participam de um processo de pré-incubação com o Sebrae-PE.

O gestor da FOZ destaca um dos casos que surgiram após uma edição do Startup Way Health. "É a Hexa Health, formada por estudantes de medicina e outros cursos, além do tutor, que é médico. É uma startup focada no desenvolvimento de uma ferramenta capaz de monitorar insumos e medicamentos termossensíveis (fármacos que precisam ser mantidos em condições específicas de temperatura para garantir eficácia e segurança).

"Estamos finalizando a plataforma para iniciar os testes e apresentá-la ao mercado. Nosso alvo são todos os espaços que necessitam fazer monitoramento de produtos termossensíveis", informa o médico e tutor da FPS André Ayalla. 

Com a FOZ, a proposta é preparar o estudante de medicina não só para o ato de cuidar, mas para a responsabilidade de gerir, planejar, inovar e transformar a saúde através de soluções empreendedoras."A gente estimula que os alunos desenvolvam pesquisas científicas inovadoras com foco em chegar a um produto real, que possa se tornar um negócio ou solução na área da saúde", sublinha Philippe Magno. 

CINTHYA LEITE/JC
Na sala de simulação realística da FPS, estudantes desenvolvem não só habilidades clínicas, mas também visão empreendedora para transformar a saúde com soluções inteligentes - CINTHYA LEITE/JC

Soluções para melhorar o atendimento ao paciente

Com o mercado da saúde cada vez mais competitivo, torna-se essencial a diferenciação dos serviços para atrair, fidelizar e cuidar de pacientes de forma integral. Ser empreendedor na medicina não significa apenas abrir um consultório; é também ter visão de mercado, compreender as demandas dos pacientes, investir em gestão e usar a tecnologia a favor da prática médica.

Assim, o médico que desenvolve habilidades empreendedoras encontra oportunidades além da prática clínica tradicional e dos consultórios. É possível se voltar a startups de saúde (soluções para diagnóstico, monitoramento remoto e inteligência artificial), educação médica (cursos online e presencial, mentorias e consultorias especializadas), gestão de saúde corporativa e serviços de telemedicina. 

Tudo isso deve ser trabalhado de forma que estudantes e médicos entendam os limites da comunicação, do marketing, da gestão, sem jamais ultrapassar as fronteiras éticas. Empreender, nesse caso, é também cuidar: da própria carreira, da sustentabilidade do cuidado e da inovação no sistema de saúde como um todo.

THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC
THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC - THIAGO LUCAS/DESIGN SJCC

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