Juramento, jaleco e gestão: os desafios de empreender na medicina e as iniciativas que apontam soluções
Faculdades e profissionais de saúde começam a romper o tabu da gestão e mostram que é possível empreender na medicina com ética, inovação e propósito

O Brasil forma, todos os anos, milhares de médicos. Dados do Conselho Federal de Medicina (CFM) mostram que, pelo menos, 35 mil novos profissionais obtêm o registro profissional por ano, o que ocorre após a colação de grau. Muitos deles saem das universidades prontos para cuidar de vidas, mas inseguros para gerenciar as suas próprias - tanto do ponto de vista financeiro quanto do planejamento de carreira. Falta conhecimento em finanças, gestão, inovação e, sobretudo, empreendedorismo. E sobram incertezas.
Esse retrato foi traçado em uma pesquisa de mestrado realizada pelo médico Jamal Sobhi Azzam, realizada durante mestrado na Fundação Getulio Vargas (FGV). O trabalho aponta um perfil do médico brasileiro com poucas habilidades de gestão e baixa iniciativa empreendedora, resultado de diversos fatores, especialmente a formação acadêmica.
É como se, no quesito gestão, esses profissionais dessem um salto no escuro com o registro do Conselho Regional de Medicina (CRM) na mão.
A pesquisa de Jamal, intitulada Habilidade de Gestão e Iniciativa Empreendedora do Médico Brasileiro, revelou um cenário alarmante. Apesar de mais de 90% dos médicos reconhecerem que não receberam preparo administrativo durante a graduação, praticamente todos consideram fundamental a introdução da educação empreendedora nas faculdades de medicina.
Os números da pesquisa de Jamal expõem um abismo: mais da metade dos médicos não tem intenção de abrir um negócio nos próximos cinco anos. Muitos encaram o consultório não como empreendimento, mas como "ganha-pão". Aproximadamente 60% admitem que, se deixassem de atender, seu negócio fecharia.
Há ainda questões mais profundas: um quarto dos médicos prioriza o "sacerdócio" da profissão, o que, embora digna, muitas vezes se traduz em despreparo para lidar com os desafios econômicos da carreira.
Aliar conhecimento médico com visão estratégica
"Falar sobre finanças, marketing ou mesmo sobre a gestão de um consultório privado parecia, durante muito tempo, quase uma afronta aos princípios da identidade médica. A medicina tem sido vista historicamente como um sacerdócio, em que o compromisso com o cuidado se sobrepõe a qualquer discussão sobre remuneração ou sustentabilidade do trabalho médico", reflete o psiquiatra e psicoterapeuta Amaury Cantilino, doutor em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento.
Ele ressalta que essa visão, embora tenha raízes nobres, acabou por produzir um efeito colateral: muitos médicos saem da faculdade altamente capacitados do ponto de vista técnico, mas absolutamente despreparados para lidar com os desafios práticos da vida profissional.
Nesse universo, muitos médicos se veem divididos: por um lado, a necessidade real de sustentar um padrão de vida digno, de garantir segurança para suas famílias, de gerir consultórios que sobrevivam às suas ausências; por outro, o medo de parecerem ambiciosos demais, de serem acusados de colocar o dinheiro acima do cuidado.
"A graduação é sólida ao abordar o funcionamento do corpo humano, os protocolos clínicos, a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), e mais recentemente tem avançado em aspectos como comunicação, empatia e relação médico-paciente. No entanto, permanece um vazio quando se trata de temas ligados à iniciativa privada – como tributação, administração, legislação trabalhista e estratégias de gestão."
Além da atuação clínica, Amaury se dedica a diversas frentes que dialogam diretamente com uma visão ampliada da carreira médica. Ele atende em consultório, ministra palestras e cursos voltados à formação e à atualização de médicos, além de liderar o projeto "Novos Papers Psiquiatria", uma iniciativa voltada à disseminação crítica e acessível do conhecimento científico na área. É uma trajetória que ilustra um novo perfil de profissional que, sem abrir mão da ética e do cuidado, busca autonomia, inovação e sustentabilidade na prática médica.
Nesse cenário, Amaury diz ver surgir uma nova geração de médicos. "São jovens profissionais que compreendem que empreender, comunicar com clareza, organizar serviços de forma eficiente e buscar viabilidade econômica não diminuem o valor ético da atuação médica. Pelo contrário: isso pode ser justamente o que sustenta uma prática de qualidade."
Ele acrescenta que o desafio é fazer esse trabalho com responsabilidade, integridade e consciência do impacto que a medicina tem na vida das pessoas.
O depoimento de Amaury ilustra o quanto o cenário atual exige que os médicos, além de terem conhecimento técnico, desenvolvam habilidades empreendedoras, seja para gerir consultórios e clínicas, seja para inovar em soluções de saúde. E esse preparo pode começar desde os primeiros anos da graduação, quando ainda se formam as bases da identidade profissional.
Inovar para cuidar
É nesse contexto que se destaca o trabalho desenvolvido pela Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), localizada na Imbiribeira, Zona Sul do Recife. Desde 2019, a instituição mantém a FOZ, um centro de inovação especializado nas áreas de saúde e educação. O objetivo é claro e direto: inserir os estudantes de medicina e demais cursos da instituição em uma cultura de inovação, gestão e empreendedorismo.
O gestor da FOZ, Philippe Magno, conta que o centro nasceu de uma demanda real: a constatação de que egressos saem de suas faculdades para abrir consultórios e não têm preparo para a função de gestores. "A FOZ foi criada justamente quando houve o boom de startups. Então, a gente percebeu o papel do empreendedorismo como agente transformador da sociedade — e também da saúde."
Na visão dele, o novo papel da graduação de medicina não é formar investidores. "O que a gente quer também é desenvolver consciência financeira, para que esses profissionais não se tornem reféns do dinheiro nem do trabalho ao longo da vida. Ser médico é uma missão de vida, e precisa haver planejamento."
A FOZ atua em camadas. A primeira é o Talks, no Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (Imip). Trata-se de um encontro mensal que apresenta palestras curtas sobre inovação e empreendedorismo. "Muitas vezes é o primeiro contato dos alunos de medicina com esse universo", diz Philippe.
A segunda camada são os módulos optativos, voltados a empreendedorismo e inovação. As aulas são semanais, e os estudantes aprendem sobre gestão, transformação digital, contabilidade, finanças, comunicação e marketing.
A proposta é trabalhar as habilidades básicas que um empreendedor deve ter. Os encontros são mediados por especialistas. "Ou seja, quem fala não é o médico para os estudantes — quem ensina são pessoas que atuam diretamente na prática. Por exemplo, um contador que trabalha com saúde é quem dá a aula sobre contabilidade", informa o gestor da FOZ.
O objetivo não é formar o estudante de medicina em contabilidade ou gestão financeira. Ele precisa entender o básico, para saber do que realmente precisa e em que momento. "Isso é uma atividade de sensibilização, que auxilia muito na formação, já que o curso de medicina é muito técnico e não aborda esses temas normalmente."
Os módulos optativos, como o de empreendedorismo, são oferecidos semestralmente. "A gente abre 60 vagas por semestre — e essas vagas esgotam rapidamente. A gente tem uma demanda reprimida. Só que ainda precisamos resolver um ponto importante: a evasão ao longo do módulo."
A desistência ocorre, segundo Phillipe, por questões que dificultam a conciliação do módulo com as demandas diversas de outras atividades obrigatórias do curso. "O interesse é real. Eles querem aprender sobre empreendedorismo, mas temos que trabalhar para evitar essa evasão."
Da sala à startup: o poder de transformar ideias em soluções
A FOZ comanda ainda o Startup Way Health. A 6ª edição começou na sexta-feira (6) e termina neste domingo (8). O evento reúne estudantes e profissionais interessados em desenvolver habilidades criativas e empreendedoras. O encontro conta com workshops e mentorias que desafiam os participantes a repensarem a forma como desenvolvem seus projetos.
"A programação conta com temas de relevância no mundo do empreendedorismo, como big idea, Lean Canvas e design thinking. Neste evento, a missão é gerar negócios inovadores a partir de problemas da saúde. Nós orientamos e estimulamos os participantes a transformarem as dificuldades em desafios. Eles formam times e, a partir do que traçam, começam a desenvolver soluções", comenta Philippe.
Apoio do Sebrae-PE
O Startup Way Health é idealizado em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Pernambuco (Sebrae-PE). No domingo, ao fim do evento, costumam surgir startups, ainda em estágio inicial, que participam de um processo de pré-incubação com o Sebrae-PE.
O gestor da FOZ destaca um dos casos que surgiram após uma edição do Startup Way Health. "É a Hexa Health, formada por estudantes de medicina e outros cursos, além do tutor, que é médico. É uma startup focada no desenvolvimento de uma ferramenta capaz de monitorar insumos e medicamentos termossensíveis (fármacos que precisam ser mantidos em condições específicas de temperatura para garantir eficácia e segurança).
"Estamos finalizando a plataforma para iniciar os testes e apresentá-la ao mercado. Nosso alvo são todos os espaços que necessitam fazer monitoramento de produtos termossensíveis", informa o médico e tutor da FPS André Ayalla.
Com a FOZ, a proposta é preparar o estudante de medicina não só para o ato de cuidar, mas para a responsabilidade de gerir, planejar, inovar e transformar a saúde através de soluções empreendedoras."A gente estimula que os alunos desenvolvam pesquisas científicas inovadoras com foco em chegar a um produto real, que possa se tornar um negócio ou solução na área da saúde", sublinha Philippe Magno.
Soluções para melhorar o atendimento ao paciente
Com o mercado da saúde cada vez mais competitivo, torna-se essencial a diferenciação dos serviços para atrair, fidelizar e cuidar de pacientes de forma integral. Ser empreendedor na medicina não significa apenas abrir um consultório; é também ter visão de mercado, compreender as demandas dos pacientes, investir em gestão e usar a tecnologia a favor da prática médica.
Assim, o médico que desenvolve habilidades empreendedoras encontra oportunidades além da prática clínica tradicional e dos consultórios. É possível se voltar a startups de saúde (soluções para diagnóstico, monitoramento remoto e inteligência artificial), educação médica (cursos online e presencial, mentorias e consultorias especializadas), gestão de saúde corporativa e serviços de telemedicina.
Tudo isso deve ser trabalhado de forma que estudantes e médicos entendam os limites da comunicação, do marketing, da gestão, sem jamais ultrapassar as fronteiras éticas. Empreender, nesse caso, é também cuidar: da própria carreira, da sustentabilidade do cuidado e da inovação no sistema de saúde como um todo.