"A leitura aumenta a liberdade"
Jornalista moçambicana Conceição Queiroz fala de seu livro com casos de racismo, critica o ódio virtual e defende a leitura contra a desinformação

Em turnê pelo Brasil para o lançamento de “Racismo: Meio século de força”, a jornalista Conceição Queiroz, natural de Moçambique e âncora de telejornal em Portugal, é um dos destaques do Festival Literário Internacional de Poços de Caldas – Flipoços, que está sua vigésima edição na cidade do sul de Minas Gerais.
Nesta entrevista ao JC-PE, ela expõe as dificuldades para publicação, diz que “as denúncias têm de ser feitas, até para expor o agressor e envergonhar as próprias instituições”, e lamenta os retrocessos que normalizam violências em pleno século 21. Para Conceição Queiroz, a leitura tem função essencial para mudar o cenário atual. “A leitura transforma, e por muito duro que o texto seja, irá certamente elucidar questões que merecem um sério debate de ideias, sem amarras”.
Neste sábado, 3 e domingo, 4, a jornalista participa de debates e do encerramento do evento. Estará presente na mesa “Fogo nos Verbos: Negritude, corpo e insurgência literária na voz das mulheres”, ao lado de Lília Guerra, Adriana Negreiros, Dia Nobre e Talita Azevedo, e no encerramento do evento, em homenagem ao Dia da Língua Portuguesa. Saiba mais no site www.flipocos.com.
Que relações você considera importante fazer sobre o racismo no Brasil e em Portugal?
Conceição Queiroz - Acima de tudo, o racismo, de forma autónoma, não é crime em Portugal. Já no Brasil, encontramos a lei mais pesada à escala global quando se fala deste fenômeno. O racismo estrutural é reconhecido no Brasil, enquanto, em Portugal, ainda domina uma inexplicável desinformação e dificilmente se assume a existência de um déficit de proteção. O debate está mais presente no Brasil. Mas aponto um denominador comum: a resistência que se traduz na luta constante. Ou seja, a influência dos movimentos sociais e o papel vital do movimento negro. Essa é a força, a afirmação, a negação de um sistema responsável por acentuadas e perigosas desigualdades que travam e excluem pessoas negras que poderiam ir além do que é suposto.
O que a levou a escrever o livro?
Conceição Queiroz - O livro revela histórias reais, de pessoas que sentiram a dor física e emocional que o racismo desencadeia. Aborda as diferentes variáveis, percorre o racismo estético, interpessoal, recreativo, intelectual, institucional, estrutural. Fiz uma série de reportagens sobre o racismo para a CNN Portugal e na sequência desse trabalho, surgiu o convite de uma editora para construir a obra. Duas semanas depois, desistiram da ideia e pediram-me que parasse. Continuei a escrever sem qualquer garantia de publicação. Uma segunda editora também rejeitou o livro e uma terceira fez o mesmo. Curiosamente, as editoras que não quiseram se comprometer, reconheceram a força do livro. Foi triste a covardia dos envolvidos. Decidi que faria um último contato. Estava exausta. Foi então essa quarta editora que me surpreendeu ao referir a potência que o livro representa. Essa editora funciona em Portugal e no Brasil, a Atlantic Books. Foi assim que avançamos. Um parto difícil.
O exercício do jornalismo contribuiu de alguma forma para você lidar com o racismo? A jornalista Glória Maria foi vítima e denunciou na TV, décadas atrás. Qual o papel da imprensa, na sua visão, para tratar a questão?
Conceição Queiroz - Não misturo jornalismo com militância. Jornalismo não é ativismo, não é sinónimo de luta antirracista. O que acontece é que a minha profissão tem uma enorme exposição pública. Quando uso a minha voz em qualquer circunstância, o público reconhece-me. E as denúncias têm de ser feitas, até para expor o agressor e envergonhar as próprias instituições. A Glória Maria fez o que tinha de ser feito e de forma bastante inteligente. Foi sempre uma referência para mim, admirável, entrevistei-a e ajudou-me numa das fases mais difíceis da minha vida em que enfrentava várias ameaças para que me calasse. A imprensa tem de mostrar os dois lados. Não apenas o trabalho das autoridades quando entram nos bairros carenciados. Quem ali vive também tem de ser ouvido - o grande público agradece.
Por que o racismo e a xenofobia persistem, em pleno século 21, na sua opinião?
Conceição Queiroz - As pessoas fingem desconhecer a História. Outros, são realmente analfabetos, os desinformados que acreditam numa estranha pureza de raça e no chamado “sangue nobre” que não se cruza com mais algum. Esses fenômenos persistem porque a ideia é maldosamente sedutora e desejável aos olhos de uma determinada franja da sociedade. No fundo, está legitimado o discurso carregado de ódio. Há um impressionante à vontade no ataque, um sentido de impunidade que aflige. Em pleno século 21, estamos a retroceder, normalizando violências que custam a vida a muita gente.
O mundo virtual e a informação em rede influenciam mais de maneira positiva ou negativa em relação ao racismo? O que fazer para que a tecnologia seja mais aliada?
Conceição Queiroz - O mundo digital dissemina a odiosidade. As impressões trocadas em rede acentuam a discriminação racial. Nesse mundo mal navegado é fácil prometer bater e matar. Temos grandes heróis por trás de um teclado. A tecnologia de ponta não foi pensada para agravar os problemas, mas para ajudar na resolução. O certo é que vemos o oposto em tantos casos. As redes seriam aliadas se as pessoas não agissem em manada e fossem capazes de se distanciar, assim que começa essa dança indecente que significa uma vergonhosa vontade de agredir gratuitamente.
Como a leitura é capaz de reduzir o racismo, Conceição?
Conceição Queiroz - A leitura combate a desinformação e transporta o indivíduo para um outro universo. A leitura mostra que não existe apenas um lado da História. A leitura desperta. A leitura dá consciência crítica. A leitura transforma, e por muito duro que o texto seja, irá certamente elucidar sobre questões que merecem um sério debate de ideias, sem amarras. Em síntese, a leitura aumenta a liberdade de cada um.