Jaime Ribeiro: A Escola Sem Muros

O portão fecha, mas os grupos de WhatsApp continuam abertos. A sala de aula termina, mas os desafios do TikTok prolongam os conflitos

Por Jaime Ribeiro Publicado em 11/09/2025 às 14:30

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Era sexta-feira de carnaval. Enquanto muitas famílias descansavam ou preparavam as fantasias para o desfile do Galo da Madrugada, um grupo de diretores escolares trocava mensagens aflitas sobre um desafio perigoso que circulava no TikTok.

O vídeo, replicado em milhares de celulares de alunos, incentivava adolescentes a praticar automutilação como forma de “coragem” e pertencimento. Ninguém conseguia relaxar. O frevo tomava conta das ruas, mas dentro de cada casa havia educadores com o coração apertado.

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A escola não tem mais muros. No passado, a sirene marcava a fronteira entre a escola e o mundo. O sinal da saída indicava que, pelo menos até o dia seguinte, diretores e professores poderiam respirar. Hoje não existe mais saída.

O portão fecha, mas os grupos de WhatsApp continuam abertos. A sala de aula termina, mas os desafios do TikTok prolongam os conflitos, muitas vezes em escalas que os adultos não conseguem prever.

Houve um tempo em que os diretores perdiam o sono com outros fantasmas. Piolho, catapora, lendas urbanas como a mulher de branco no banheiro. Hoje, os pesadelos são digitais. Um boato em grupo pode arruinar a reputação de um aluno.

Uma trend aparentemente inofensiva pode colocar em risco a integridade física de dezenas de jovens. Diretores que antes cuidavam de surtos de sarna ou de carteiras riscadas agora lidam com automutilação, bullying amplificado e crimes transmitidos ao vivo.

Scott Galloway, professor da NYU, lembra que a hipervisibilidade é a moeda mais cara do nosso tempo. Ninguém mais é invisível. Tudo pode ser filmado, exposto, julgado. Para os adolescentes, essa pressão é insuportável. Para os líderes escolares, a consequência é o estado de alerta permanente.

Todo mundo pode perder o controle, o educador não pode. Na rua, qualquer profissional pode se exaltar. Se for o educador, aparece logo alguém filmando: “olha lá o professor”. Isso gera um silêncio que não vem da paz, mas da exaustão. Byung-Chul Han chama isso de Sociedade do Cansaço. Vivemos uma era em que não temos mais um opressor visível, mas nos tornamos nossos próprios algozes.

Nessa nova escola, cada vez mais parecida com uma startup, cada vez mais medida por planilhas, o professor não é apenas educador. É influenciador, animador, psicólogo, mediador de conflitos, criador de conteúdo e, ainda assim, às vezes invisível. Invisível porque o que se mede, importa.

O que não se mede, cansa. O panóptico clássico deu lugar ao panóptico invertido: o controle vem dos pais, dos alunos, dos colegas e das redes sociais. O professor está exposto em praça pública digital. Isso adoece.

Há também o excesso de positividade. Tudo tem que ser incrível o tempo todo. A positividade tóxica transforma todo fracasso em culpa individual. “Se o aluno não aprende, a culpa é minha.” “Se a aula não encanta, eu sou o problema.” Isso corrói a saúde emocional dos educadores. Han lembra que a depressão e o burnout não vêm apenas da opressão, mas da sobrecarga de possibilidades. Tentamos ser tudo e isso nos esvazia.

Nesse ambiente de hipertransparência, a espontaneidade dá lugar ao medo. Transparência pode se tornar uma forma de violência. O professor não pode errar. Tudo pode ser printado, exposto, distorcido. O diretor não pode titubear, porque cada vacilo vira meme. A escola inteira é colocada sob a lupa da exposição digital.

Não podemos sair com mais uma cobrança ou autoculpa. Precisamos de um reposicionamento coletivo. A escola não pode ser apenas esponja dos males sociais. Precisa cuidar de si, sustentar seus líderes, proteger seus profissionais. É urgente investir em programas de apoio psicológico, espaços de escuta, formações humanas e políticas públicas que reconheçam a saúde mental como estratégica.

Se antes o diretor era acordado à noite para resolver brigas no pátio, hoje é acordado para lidar com tentativas de suicídio, desafios autodestrutivos e crimes digitais. Fingir que nada mudou é trair a confiança das comunidades. Não há retorno.

A escola vive para além de seus muros, horários e sirenes. O desafio é ser escola nesse mundo sem descanso. E isso começa pelo líder que, em vez de se consumir em silêncio, tem coragem de se preservar para depois preservar sua comunidade.

O futuro da escola passa por essa coragem. O diretor que aceita a lógica da disponibilidade infinita não é herói, é vítima. O professor que silencia diante da exaustão não é resiliente, é refém. A comunidade que finge normalidade é cúmplice do adoecimento.

Jailton Jr/JC Imagem
Jaime Ribeiro fala no JC Educação sobre como a escola não se limita mais aos seus próprios muros - Jailton Jr/JC Imagem

A escola sem muros obriga a encarar a verdade: ou cuidamos dos líderes agora, ou veremos um colapso coletivo. Esse colapso não é inevitável. Ele pode ser evitado com coragem política, institucional e pessoal. Coragem para criar políticas de apoio, rever práticas que adoecem e desligar o celular quando preciso.

A escola boa não será a que promete conforto. Será a que sustenta a verdade. Será a que protege sem iludir. Será a que prepara sem infantilizar. E, acima de tudo, será a que cuida de si mesma para poder cuidar dos outros. Essa escola sem muros, exposta, vulnerável e conectada, precisa se reinventar não para voltar ao passado, mas para sobreviver ao presente e cumprir sua missão no futuro.

*Jaime Ribeiro, CEO e cofundador da Educa

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