Mujica é celebrado pela esquerda que não tem coragem de seguir seu exemplo
O ex-presidente uruguaio nunca aliviou para ditadores latino-americanos por eles serem de esquerda. E vivia na extrema simplicidade que pregava.

Era 2014 e o então presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, dava uma entrevista a vários órgãos de imprensa, numa calçada. Um homem, maltrapilho e barba por fazer, atravessa o espaço dos microfones e pede, quase chorando, uma “moeda” ao chefe do Executivo. O inusitado da situação provoca risadas nos repórteres que aguardam a reação do entrevistado.
Surpreso, Mujica mete a mão no bolso e saca a própria carteira, enfia dois dedos volumosos no acessório de um couro marrom desbotado. Rapidamente olhando a imagem dá para notar que não há quase nada. A carteira estava praticamente vazia. “Olhe amigo, moeda eu não tenho, mas não chore”, em tom fraterno ao homem, segurando uma cédula de cem pesos (algo equivalente a uns dez reais) e dando ao pedinte.
Emocionado, o homem segura o pouco dinheiro e agradece: "Quero que sejas presidente a vida toda". Mujica imediatamente faz uma expressão de desespero e rebate: “Não, não, não, amigo. Não seja louco”. Os repórteres observam admirados entre gargalhadas e a entrevista continua.
Despolarizar
Quando foi anunciada sua morte, imediatamente políticos e militantes da esquerda correram para postar imagens de José “Pepe” Mujica, em homenagens tão distantes do exemplo de simplicidade que o líder uruguaio dava que nem pareciam ser para ele.
Usar Mujica como “símbolo de luta revolucionária” da esquerda, como alguns fizeram, é uma redução até estúpida do seu papel e ignora o que ele próprio pregou nas últimas quatro décadas. O ex-presidente do Uruguai precisa ser lembrado como alguém que ajudou a encerrar o ódio e a despolarizar a política. Porque foi isso o que ele fez de melhor. É onde ele se realizou e foi feliz.
Lutou sim
Mujica lutou a vida inteira, é verdade. Primeiro lutou armado, quando foi guerrilheiro, membro do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, nos anos 1960. Em ação armada, liderou roubos a bancos e distribuía o dinheiro em comunidades pobres do país. Quando ia ser detido pela polícia, reagiu e levou seis tiros. Quase sangrou até a morte e, depois de sobreviver, ficou 14 anos preso.
Nesse período lutou pela própria vida. Ele nunca foi julgado e nem condenado pelo regime militar, apenas jogado lá para morrer. Perdeu todos os dentes em surras rotineiras, comeu papel higiênico, sabão e até moscas para sobreviver. Conta que bebia a própria urina e era visitado por ratos toda noite. Dizia que ali aprendeu a viver com pouco, porque sua maior felicidade era quando tinha um colchão à noite para dormir.
União
Mas a maior luta de Mujica ainda não foi com armas, não foi contra a direita, contra a ditadura ou pela sua própria sobrevivência. Em meados dos anos 1980, quando saiu da cadeia, o líder uruguaio resolveu lutar pela união entre os povos de seu país e não por mais divisão como aconteceu no Brasil e na Argentina, por exemplo.
Dentro do processo de redemocratização que ajudou a implementar, fez questão de colocar em discussão o convívio harmonioso entre os que pensavam diferente e rejeitou qualquer tipo de revanche, vingança ou perseguição aos que lhe impuseram toda a dor dos anos de prisão. O primeiro ato foi transformar o Tupamaros em partido legalizado, abandonando a luta armada.
Reconstrução democrática
Depois Mujica começou a fazer campanhas que defendiam o óbvio: o desenvolvimento do país, a melhoria da economia, o combate à desigualdade tem que ser prioridade contra qualquer tipo de birra ideológica ou sentimento de ódio entre os polos. O Uruguai é hoje o país democrático menos polarizado ideologicamente da América Latina.
E isso aconteceu com alternância de poder pacífica. Com o próprio Mujica sendo presidente entre 2010 e 2015, mas mantendo convivência harmoniosa, por exemplo, com Luis Lacalle Pou, conservador do Partido Nacional, adversário, com quem chegou a viajar junto quando este era presidente, entre 2020 e 2025, e depois ajudou a derrotar na última eleição. Sem que a relação dos dois mudasse por isso.
Discurso e prática
O ex-presidente uruguaio nunca aliviou para ditadores latino-americanos por eles serem de esquerda. Criticou de maneira muito dura, publicamente, mais de uma vez, os regimes de Nicolás Maduro na Venezuela e de Daniel Ortega na Nicarágua. Lutava pela democracia, mas a defendia sem precisar construir inimigos entre os adversários da direita e sem passar a mão na cabeça da esquerda.
Isso tudo ainda sem citar que Mujica vivia realmente aquilo que pregava, desde a simplicidade até a justiça social. Não era um homem de fazer discurso pelos mais pobres enquanto vivia em palácios, nem mesmo quando foi presidente.
Exemplo
No exercício do cargo, o presidente uruguaio continuou morando num sítio simples, nos arredores de Montevidéu, onde cultivava flores e hortaliças. Dirigia um fusca 1987 (alguns dizem que era 1986), azul, que usava para ir trabalhar e voltava para casa todos os dias.
A propriedade rural, que já não era muito grande, ficou ainda menor depois que ele doou cerca de 25% da área para uma fundação que constrói casas para abrigar ex-presidiários, em 2019.
Quando foi chamado, em 2014, de “o presidente mais pobre do mundo”, respondeu com tranquilidade: “Eu não sou pobre, sou sóbrio. Vivo com o suficiente para que as coisas não me roubem a tranquilidade”.
Se os líderes da América do Sul realmente seguissem seu exemplo de luta ao invés de só publicarem fotos e vestirem camisas com sua estampa, seríamos sortudos.