
Todo dia é dia de ressaltar a igualdade entre os seres humanos e a singularidade de cada um de nós. Mas, em meio às comemorações do mês da consciência negra, é angustiante saber que muitas crianças ainda sofrem preconceito por conta de sua cor, cabelo e origem étnica. E é inspirador perceber as formas que as famílias vêm encontrando para reforçar a autoestima de seus filhos, formando cidadãos mais críticos e orgulhosos de si.
Ninguém se engane: a necessidade desse suporte começa muito cedo. Letícia tinha 3 anos quando uma coleguinha da mesma idade, na aula de balé, excluiu-a da brincadeira por causa de sua cor. “Ela era tão pequena que não soube nem relatar o contexto. Para mim foi uma surpresa, não imaginava que teria que explicar isso à minha filha, em pleno século 21. Só assumi que somos diferentes mesmo. Que temos esta cor e que isso é bom”, diz sua mãe, a fisioterapeuta Bernadete Pinheiro. Dona orgulhosa de uma cabeleira cacheada, Alice, de 9 anos, vem sofrendo bullying na escola municipal onde estuda, no Ibura. Irritada por ser chamada de feia e de “cabelo de Bombril”, a menina fez um desabafo nas redes sociais e sua mãe, Marina Melo, está em buscas de providências para que a filha retome o prazer de frequentar a sala de aula. Já Antonio tinha pouco mais de um ano e brincava na praça de Casa Forte quando uma babá se referiu ao seu “cabelo ruim” e à sua “cara de pobre”. Aos 8 anos, dias após ver o padrasto ser confundido com um assaltante por uma senhora do bairro, ele comunicou sua decisão à família. Queria pintar o cabelo de louro. E usar lentes de contato azuis.
SUPORTE É NECESSÁRIO
Diante desse tipo de situação, há quem diga que é exagero ou que não há o que se fazer. “O fato é que o racismo acontece desde a mais tenra idade e muitas crianças entram em grave sofrimento psíquico em função de seu pertencimento racial”, destaca Vera Baroni, que é membro do colegiado da Sociedade de Mulheres Negras de Pernambuco. À família, cabe reforçar a autoestima dos pequenos e falar de sua ancestralidade de forma positiva.
“As crianças precisam aprender a se defender”, ressalta Vera. Isso inclui contar a verdadeira história da África, fugindo dos estereótipos, e oferecer brinquedos, livros e outros objetos que façam referência a essa herança. Mas, mais do que isso, significa ajudar as crianças a fazer uma leitura crítica dos modelos expressos pela mídia e se posicionar contra qualquer forma de preconceito. “É difícil, e o discurso de igualdade às vezes vai ao chão quando, em algumas famílias, se tem vergonha da avó que é preta ou do tio que exerce uma profissão menos valorizada em nossa sociedade”, resume.
Às vezes, o problema acontece entre as próprias crianças. A cantora Isaar de França, terceira de uma “escadinha” de cinco irmãos, sofria bullying por parte do irmão dez meses mais moço. Negro de tez clara e olhos verdes, Esrilton reproduzia em casa o que via na rua e só percebeu os atos que praticava após a adolescência. Isaar passou pelos problemas típicos das meninas negras: ganhava bonecas que não tinham nenhuma característica física em comum com seu fenótipo, amarrava lenços na cabeça para fingir que tinha cabelos longos e lisos, e durante muito tempo foi refém dos alisantes e chapinhas. No fim da década de 1990, assumiu a origem étnica por meio de longos dreadlocks. Hoje, o penteado blackpower é motivo de conversa com a sobrinha Beatriz, de 9 anos, filha de Esrilton. “Ela nasceu com a pele clara e cabelos lisos. Então, eu brincava, comparando nossos cabelos e mostrando que nossos fios são diferentes, mas que está tudo bem em ser assim”, explica.
ARTE COMO INSTRUMENTO
Para a historiadora Vanessa Marinho, a forma de trabalhar a ancestralidade dos filhos Iago, de 7 anos, e Theo, de 4, passa pela arte. “Costumo utilizar livros com personagens negros, contar histórias sobre o continente africano. O pai deles é de lá, de São Tomé e Príncipe, e isso para os meninos se dá de forma natural. Quero que eles possam se reconhecer, se ver representados”, explica. Arte-educadora, ela aborda as cores e a temática da cultura africana em pinturas, roupas e esculturas feitas pelos meninos. Até o momento, nenhum dos dois relatou qualquer tipo de problema relacionado à cor de suas peles. “Mas eles estão sendo preparados para se defenderem, quando for necessário, e sabem que não têm mais ou menos valor do que ninguém pelo fato de serem como são”, resume.
A estudante universitária Aline Lucena, mãe de de Guilherme, de um ano e 5 meses, leva o filho para participar de ensaios de maracatu. “Ele é louco pela alfaia, gosta de brincar de capoeira. Trago esses elementos da cultura africana para a vida dele porque quero que cresça com orgulho de suas origens”, afirma.
A música também foi a forma encontrada pelos pais de Antonio para tentar reverter seu desejo de “virar branco”. “Os negros são pobres, moram nas favelas e vendem drogas”, apontou o menino. Foi então que Antonio foi apresentado à história da África e ao herói negro Zumbi dos Palmares. “Ele se apaixonou por Jorge Ben e passou dias cantando, sem parar, a música que pergunta o que vai acontecer quando Zumbi chegar. E fala, todo feliz, que os negros são fortes e inventaram a capoeira”, conta a mãe, Mariana, que agora reforçou o hábito de apontar exemplos positivos de personagens negros, para que o filho tenha em quem se espelhar.
Em alguns casos, como no da pequena Alice, o problema chega a ferir direitos garantidos pela legislação. Membro de um grupo de afoxé e defensora da cultura afro, Marina Melo assustou-se com o impacto do preconceito sobre a filha, que além de ser ofendida por colegas de escola, teve a dor minimizada pelas professoras. “Já avisei à escola que, se não houver nenhuma ação reparadora, alguma solução efetiva, vou procurar o Ministério Público”, conta, irritada. O órgão, que atende denúncias de racismo através do fone 0800 281 9455, pode ser a instância necessária para que a menina volte às aulas. “Infelizmente, ainda é comum que as escolas sejam palco de racismo, e eu não vou aceitar que minha filha seja discriminada”, finaliza.
INSTRUMENTOS FACILITADORES
Toda criança, um dia, carregou no estojo escolar um lápis bege-rosado popularmente conhecido como “cor-de-pele”. Cor de que pele?, questionaram alguns alunos de uma escola estadual gaúcha. O resultado foi uma caixa de lápis especial, com nada menos que 12 matizes diferentes de “peles”, produzidos através de uma parceria entre a empresa Koralle e o Uniafro (curso de aperfeiçoamento em Política de Promoção da Igualdade Racial na Escola promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Além de proporcionar tons mais realistas às pessoas retratadas nos desenhos infantis, a ideia é promover a igualdade e mostrar a diversidade racial dos brasileiros.
Este tipo de iniciativa, mais do que se constituir em algo lúdico, ajuda as crianças a ampliar suas visões de mundo. Por isso a importância de ofertar bonecas que representem a diversidade de formas e cores existentes na sociedade em que vivem. Como a oferta escassa de bonecas negras no mercado brasileiro já foi maior, mas ainda hoje é difícil encontrar uma variedade de modelos, a dentista Patrícia Sampaio (que é branca e mãe de Nina, uma menina negra), chegou a pedir a amigos que comprassem brinquedos fora do País. Assim, ela reforçou o acesso da filha, hoje com 6 anos, a bonecas que reproduzissem sua compleição física, lhe servindo de espelho. Além das bonecas, Nina gosta de usar turbantes e lenços africanos. “São ferramentas para a representatividade das meninas negras”, resume a mãe.
Vanessa Marinho destaca a importância de alguns livros infantis, que podem trazer histórias tradicionais africanas ou contar com protagonistas negros. Alguns exemplos são O Brasil que veio da África, de Arlene Holanda; As Lendas de Dandara, de Jarid Arraes; Koumba e o Tambor Diambê, de Madu Costa; Obax, de André Neves; e As Panquecas da Mama Panya, de Mary Chamberlin e Richard Chamberlin. “Nem sempre é fácil encontrar esse tipo de literatura, mas é importante que eles possam se ver, se sentir representados”, aponta. Uma obra local é a coletânea Contos Infantis Afrobrasileiros, onde o padrasto de Alice, Rivaldo Pessoa, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU) em Pernambuco, teve alguns contos publicados. “As crianças precisam ouvir histórias de heróis negros e, ao mesmo tempo, perceber que são pessoas iguais às outras”, diz ele.
CABELO REFLETE ORGULHO
O reforço na autoestima pode estar ligado, também, à expressão da beleza. No caso das meninas, o cabelo, que é um elemento de destaque da feminilidade, costuma ser, ao mesmo tempo, alvo de críticas racistas e símbolo da identidade negra. Por isso, as cabeleiras crespas podem ser um dos instrumentos mais fortes de orgulho racial, formas de se assumir um padrão de beleza que vai contra o que a mídia impõe. “Aqui em casa não alisamos os cabelos, mostramos que o crespo é natural”, confirma Bernadete, mãe de Letícia.
“Eu gosto de usar meu cabelo grande e solto, desde pequena”, confessa, por sua vez, Alice. Na parede de seu quarto, o desenho de uma menina com cabelo blackpower mostra a vaidade em relação a si mesma. Ela conta que não tem mais vontade de ir à escola porque “as professoras não ligam, não fazem nada para impedir os meninos de zombarem da gente”, e que não sabe ficar parada. “Eu me defendo”, assume.
Com muita maturidade, Alice resume o que já aprendeu em seus poucos anos de vida: “a gente não deve julgar os outros pela aparência e sim pelo caráter. Na verdade, quando eles chamam meu cabelo de Bombril estão atingindo a eles mesmos. Todos no Brasil somos descendentes de negros. Então, me xingando, estão falando deles próprios”, fuzila.
Após quase duas semanas de problemas com os colegas da escola, a autoestima da pequena reavivou-se quando ela participou da sessão das fotos que ilustram esta matéria.“Fiquei muito feliz. É muito importante ter a oportunidade de ser ouvida”, agradeceu.
A chance de ser visto, ouvido, respeitado e aceito, com todas as possíveis singularidades, é algo garantido a todas as crianças pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em novembro, mês da consciência negra, e em todos os outros meses do ano. Em casa, na escola e em qualquer lugar onde os pequenos circulem. É nisso que as famílias que entrevistamos acreditam. Com força, raça e amor.