
Maria Luiza Tucci Carneiro é professora livre docente de História da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o Laboratório de Estudos da Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) do Departamento de História da USP. Sua área de especialidade é o antissemitismo no Brasil: a imigração judaica, o drama vivenciado pelos judeus refugiados do nazismo, o Holocausto e a censura. Ela é autora de dezenas de livros sobre esses temas, dentre eles O Anti-Semitismo na Era Vargas, e o Cidadão do Mundo traduzido esse mês para o alemão. O resultado de 30 anos de pesquisas podem ser consultados no site Arqshoah - Arquivo Virtual sobre o Holocausto e Antissemitismo: www.arqshoah.com.br.
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JORNAL DO COMMERCIO – A postura dos embaixadores brasileiros durante a Era Vargas foi de recusa a grande parte dos judeus que tentavam entrar no Brasil. Mas o presidente Getúlio Vargas sabia da condição infligida aos judeus na Europa?
Maria Luiza Tucci Carneiro – Vargas tinha conhecimento da situação vivenciada pelos judeus na Europa, assim como das Circulares Secretas, de teor antissemita, como pode ser constatado nas citações que ele faz em seu diário pessoal. O Ministério das Relações Exteriores, cujo chanceler era Oswaldo Aranha (1937-1944) recebia mensalmente relatórios políticos enviados por diplomatas em missão na Alemanha e países ocupados pelos nazistas ou colaboracionistas. Grande parte destes diplomatas referiam-se aos judeus de forma depreciativa e estigmatizada, dificultando a emissão de vistos.
JC – Mas Vargas recebia pressões de fortes organismos internacionais para que os judeus fossem aceitos no Brasil. Como se explica que o governo esteve ao lado dos Estados Unidos e manteve uma prática restritiva e antissemita desta, tão associada ao nazismo?
Tucci – Considero vergonhoso para o Brasil ter este lado tão negativo para a sua história, constatar que um tema tão humano teve este tratamento. Enquanto que oficialmente comprometeu-se em dar 3 mil vistos por mês aos judeus perseguidos pelos nazistas e outros povos, nós cumprimos com 10%, ou menos ainda. Uma das Circulares Secretas exigia o depósito de um valor no Banco do Brasil, selecionando os judeus por “capacidade financeira”, o que é revoltante para aquele momento.
JC - Os judeus que conseguiram os vistos foram perseguidos no País?
Tucci – O apoio aos judeus refugiados (Cidadãos do Mundo) que ingressaram no Brasil entre 1933-1948, foi dado pela própria comunidade judaica brasileira e associações judaicas no exterior, como a JOINT, por exemplo. Até o presente momento contabilizei mais de 16 mil vistos negados aos judeus identificados como da “raça semita” ou por serem “não-arianos”. Basta ler os documentos diplomáticos e administrativos.
JC - Então não houve perseguição dentro do Brasil...
Tucci- Em várias cidades brasileiras, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife, os judeus foram tratados como “súditos do Eixo”, presos e discriminados por suas origens. Documentos do Dops registram a persistência deste pensamento antissemita alimentado por mitos políticos, como o do “complô-judaico comunista”.
JC- Como explicar a edição das circulares secretas no governo Vargas que proíbiam a entrada de judeus e apátridas no Brasil?
Tucci: As circulares secretas não devem ser interpretadas apenas como uma política de Estado dos governos Vargas e Dutra. As raízes desta mentalidade intolerante são muito mais profundas e encontravam-se arraigadas nas entranhas do poder, assim como em vários segmentos da sociedade brasileira, católica por tradição. Podemos afirmar que tanto a Igreja Católica e o Estado brasileiros foram realmente promotores do antissemitismo que, entre 1917-1932, extrapolou as fronteiras do discurso literário folhetinesco e da doutrinação católica, alcançando o saber técnico dos burocratas brasileiros.
JC- De acordo com seu livro Cidadão do Mundo, o governo Vargas tinha duas caras: de uma Nação aberta e democrática e outra, camuflada, que colaborava com os regimes totalitários endossando o antissemitismo.
Tucci - Tanto no livro Cidadão do Mundo como no livro O Anti-semitismo na Era Vargas, demonstro que a imagem de um Brasil “neutro” diante da ideologia nazifascista é uma farsa. Durante décadas esta versão foi alimentada pela historiografia brasileira que, em parte, não tinha acesso aos documentos considerados secretos e confidenciais. A abertura dos arquivos do Itamaraty e do DEOP/SP à partir de 1995, renovou a História do Brasil e mostrou a face [secreta] de Vargas e seus colaboradores.
JC- Qual o papel exercido pelo diplomata Luiz Martins de Souza Dantas ?
Tucci- A postura humanitária de Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador do Brasil na França, foi citada pela primeira vez em meu livro O Anti-semitismo na Era Vargas em 1988. Nesta época muito pouco se conhecia sobre a postura antissemita ou filossemita da diplomacia brasileira. Aliás, este era um tema tabu e como tal deveria ser silenciado pois eram informações perturbadoras das versões oficiais. Tanto assim que são recentes as outorgas do título de “Justos entre as Nações”, pelo Yad Vashem de Jerusalém, ao embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas e a Aracy Moebius de Carvalho, esposa do escritor e diplomata Guimarães Rosa. O fato de Souza Dantas ter sido penalizado “a bem do serviço público” por conceder vistos aos refugiados judeus desobedecendo as circulares secretas, demonstra que o governo Vargas manteve uma política imigratória seletiva, excludente das minorias e descomprometido com a causa judaica, que, naquele momento, clamava por soluções imediatas.