
Educar é muuuuuuuito mais que entreter. Entre as definições para este segundo verbo, estão “perder o tempo” e “ocupar-se (por distração) em” – e, por isso, muitas vezes, pais e mães pecam por oferecer à garotada uma modalidade mais rasa de consumo cultural, resumindo-se à categoria das “distrações”. A diversão é importante, mas não somente. Ela pode e deve ser atrelada ao crescimento e amadurecimento intelectual do indivíduo desde a mais tenra idade. Não subestime seus filhos: é na infância, período da vida com um sem fim de possibilidades, que as crianças constroem e se constroem para o mundo.
Em tempos nos quais os comandos são dados por dedos deslizantes em telas touchscreen, vale a reflexão: que produtos estimulam, verdadeira e honestamente, meninos e meninas ávidos por descobertas? Neste sentido, é fundamental ir além das cores e movimentos, que estimulam a efusividade e estão sempre presentes no universo do pequenos, e pensar também num conteúdo mais permanente. O que seu filho pode aprender para além da diversão?.
“O que você vai ser quando crescer?” está entre as perguntas que atestam o acelerado processo de “adultificação” que Hugo Monteiro, doutor em Educação e mestre em Formação do Leitor, Letras e Pedagogia, mencionou em entrevista ao JC Mais. “Quando se pensa em criança, se pensa também como ela vai, futuramente, consumir, ser comprador, entrar no mercado de trabalho. Quando se pensa em criança e adolescente, o mágico, o imaginário, o maravilhoso, se volta para aquele indivíduo que vai consumir e lidar, desde a brincadeira, com o sistema econômico em vigência – políticas, empresas, fábricas e comércio”, aponta o pesquisador, que investiga os direitos humanos da infância e a formação do leitor numa perspectiva transdisciplinar.
“Nessa sociedade atual, a criança tem sido compreendida como adulto. Como uma criança adultizada, que é um tipo encontrado desde a Idade Média”, afirma Hugo, que alerta ainda para a atual tendência de vestir os pequenos como se fossem artistas adultos; de fazê-los consumir música de gente grande – como exemplo disso, há, mais recentemente, os versos de canções como Pararatimbum, da MC Tati Zaqui, enxertados sobre trilha sonora do clássico infantil Branca de Neve e Os Sete Anões: “Eu vou / Eu vou / Sentar agora eu vou”.
Ao invés da linguagem da criança, o vocabulário é cada vez mais contextualizado culturalmente com a geração de seus pais e a fase adulta. O resultado disso? Hugo, que também é professor da Universidade Federal de Pernambuco, alerta: “Encontro, cada vez mais, crianças com sinais de depressão, ansiedade, síndrome do pânico e outras doenças de adulto.”
Na contramão do mercado, há quem se importe com a formação intelectual dos pequeninos – que estão longe de serem ingênuos e acríticos – e produza conteúdos que propiciem um crescimento saudável e estimulante para essas crianças. Pernambuco vai bem no segmento, oferecendo ao Brasil desde shows voltados ao público mirim a animações e musicais, passando por literaturas provocativas e suas respectivas contações de histórias – algumas, de tradição oral, reforçando a paixão nata da garotada pela linguagem.
Foi-se o tempo em que o “atirei o pau no gato” satisfazia, somente, numa ciranda sem questionamentos e provocações. É bom perguntar também, e responder, ter voz ativa – ou seja, trocar. “Estamos pautadas numa relação de mútua aprendizagem”, conta Lulu Araújo, uma das gêmeas da dupla Fadas Magrinhas. Com humildade, ela descreve o trabalho desenvolvido pelas irmãs: “A gente não tem a pretensão de levar um trabalho que realmente seja uma verdade absoluta, mas algo que se construa no coletivo, no passo com as crianças. O que a gente busca dentro do trabalho é a troca de vivências e o respeito com o público infantil.”
“Uma pessoa de 88 anos acabou de ler Os Anjos Estão de Volta e ligou para mim”, relata Hugo. E continua: “A senhora me contou que a história fez com que ela voltasse ao tempo em que tinha dez anos de idade, porque o livro buscou nela a criança que cada um traz dentro de si. A infância não é uma fase da vida: é um sentimento, uma construção, que se pode fazer com o adulto também.”
Abaixo, artistas que se comunicam com o público infantil contam como eles formatam o conteúdo e a embalagem das mensagens que, possivelmente, as crianças vão levar com elas para o resto de suas vidas.
Coisinha
Formado pelos cantores China, Lula Lira (Afrobombas) e os integrantes da banda Mombojó, o projeto Coisinha é tipo uma farra musical de garagem, com muitas tintas e cores. Ligados na fonte de imaginação e criatividade que jorra de qualquer criança, eles investem na instiga, chamando a garotada para participar. “Antes do show começar, elas pintam quadros que ficam expostos durante a apresentação”, conta Lula. “E algumas músicas servem de gancho para puxar uns papos legais com os pequenos, inclusive em brincadeiras como ‘morto-vivo’ e ‘seu rei mandou dizer’, quando os adultos também brincam juntos!”.
Em tempos de smartphones, tablets e outras tecnologias, recorrer a velhas brincadeiras se configura como uma troca mais horizontal, intercâmbio entre gerações. Envolver e misturar as mães, os pais, os músicos e as crianças é uma das receitas do grupo: “Tentamos fazer com que todo mundo se sinta parte do espetáculo. E tratamos todos de igual para igual.” Sim, bem como afirmou a fada magrinha Lulu Araújo, algumas crianças (assim como alguns pais) podem simplesmente preferir não interagir. “Eu costumo dizer que o público infantil é o mais difícil, por ser extremamente sincero. Se não tá legal ninguém vai fingir que tá, o que é ótimo porque estimula a gente a dar o melhor”, admite Lula.
Mas não tem problema, cada show se torna um desafio, conta: “Em todo começo de show, existe aquele ar contemplativo e curioso no rosto delas, mas não demora e já tá todo mundo cantando e querendo subir no palco”.
Um dos planos é liberar o microfone pra quem quiser cantar músicas como O Lobisomem (Trem da Alegria) e Banho é Bom (trilha sonora do seriado televisivo Castelo Rá-Tim-Bum), presentes no imaginário infantil dos músicos – hoje na faixa entre 25 e 50 anos.
Cia. Agora Eu Era
Em grande parte das vezes, quando uma criança é levada para participar de alguma atividade infantil, ela não se entrega prontamente – pois é questionadora por natureza. Mas a empatia ajuda nessas horas. Para sentir como está a temperatura desse público, Nanda Mélo, especialista em Arte, educação e tecnologias contemporâneas pela Universidade de Brasília, tem um ‘bom dia’ e ‘boa tarde’ especiais, um bom dia de bicho, que pode ser de leão ou de passarinho. A brincante visual já contava histórias para as crianças quando achou que a experiência iria ficar muito mais bonita com música. Ela convidou, então, a musicista Cacau Nóbrega para “tocar histórias com as cordas do seu violão” e formar a Cia. Agora Eu Era.
Elas capricham no figurino, mas o forte mesmo, segundo as próprias artistas, é o “elo com a maneira mais ancestral e autêntica de ver através do olhar, da risada, da cumplicidade para determinada história fazer sentido”.
Na contramão do “excesso de estímulos” que as crianças encontram na sociedade, conta Nanda, é importante buscar maneiras mais pessoais e lúdicas de ensinar, passar valores “mas não no sentido moralista; mas informação humana mesmo”.
Fadas Magrinhas
As gêmeas cantoras e percussionistas Lulu e Aninha Araújo, quando crianças, não se atreviam a usar shorts por causa dos “cambitos” (as pernas finas, em bom pernambuquês). Em suas mensagens, elas defendem, entre outras coisas, que aceitar o corpo como ele é devia ser condição adquirida desde a infância. As artistas já trabalharam como professoras e sabem da importância da música na formação dos pequenos. A partir de ritmos nordestinos, como o maracatu e o baião, ensinam, também, a conviver com as diferenças e a diversidade cultural de nosso país. Elas compreendem e incentivam a postura observadora das crianças: “Muita gente busca fazer um show que seja interativo. Claro que, automaticamente, quando a gente se diverte no palco, aquela energia rola e chega em todo lugar. Mas é importante ter a consciência de que as crianças também têm condições de contemplar”, diz Lulu, que se surpreendeu, certa vez, quando um motorista de táxi carioca questionou a presença de uma banda infantil completa, como a delas, com guitarra, baixo, bateria. “Era como se ele disse: – isso tudo, para crianças? Como se elas não precisassem de tanto. É um grande equívoco acreditar que a criança não sabe ou não precisa de algo elaborado.”
Hugo Monteiro
O professor e escritor Hugo Monteiro, quando vai escrever para as crianças, segue uma receita parecida com a do autor escocês James Barrie, autor do livro Peter Pan – obra posteriormente adaptada para o cinema e que, por meio do fantástico, consegue trazer à tona a leveza infantil até no mais sisudo adulto: quem nunca desejou os descompromissos da Terra do Nunca?
Despe-se, então, da couraça adquirida década após década de vida com os percalços do amadurecimento. “Quando trato, uso muito a empatia e me coloco no lugar delas. ‘Sou adulto, mas como vou conseguir chegar?’, me pergunto. ‘Eu já sei como! Vou usar os mesmos recursos delas.’ Então escrevo o livro como se fosse um brinquedo.”
O seu livro mais recente é Os Anjos Estão de Volta, mais direcionado ao público infanto-juvenil – o autor aponta que crianças de dez anos já percebem bem as mensagens da história. Mas foi com os livros Antônio e Emílio (indicado ao prêmio Jabuti de Literatura em 2014) que ele desbravou o universo infantil, tratando de temas como os direitos humanos para crianças. “É como se nós, adultos, reconhecêssemos uma infância que não é real. Você reconhece a infância bobinha e ingênua, sem criticidade, sem criatividade e inteligência. Mas as crianças são extremamente criativas, perspicazes, e cheias de opiniões.”
Palavra Cantada
Será que tem farinha? Será que tem balinha!? Será que tem macarrão? Será que tem caminhão? Não é que parece mesmo a cabeça de uma criança pensando? Na imaginação infantil, a fantasia é mais que possível. Dessa forma, o grupo Palavra Cantada mergulha nos mais diversos mundos infantis. Eles completam 20 anos, nos quais criaram e interpretaram canções geográficas, históricas e fantásticas. Educam sem imposições, sendo cúmplices; e as crianças, partícipes. Sandra Peres e Paulo Tatit, dupla que dá voz ao Palavra Cantada, se aproximam do seu público pela empatia com as birras familiares (no caso da música Irmãozinho), pela alimentação (em músicas como Fome Come), pelo brincar (Criança Não Trabalha). Os pais, por sua vez, se perguntam “por que não?” e caem na dança. Muito importante também é respeitar a inteligência da criança e isso se reflete na qualidade das canções e dos produtos realizados por eles como shows, discos, DVDs e videoclipes – nesta última categoria, o mais recente é o da música Vai e Vem das Estações, que conta com a participação de Mônica Salmaso e Arnaldo Antunes (ex-Pequeno Cidadão, outro grupo dedicado às crianças, assumido hoje pelos músicos Taciana Barros, Edgard Scandurra e Antonio Pinto).
Veja matéria completa na edição do suplemento JC Mais deste domingo (11).