Quando os Beatles lançaram o Álbum Branco, 50 anos atrás, críticos comentaram que lançar dois LPs de uma só vez foi um erro do grupo – poderiam ter apresentado um ótimo disco simples. Algum tempo depois, já se dizia que o Álbum Branco deveria ter sido uma obra tripla pela quantidade de canções que ficaram de fora. Pode-se dizer o mesmo do novo disco Heaven & Earth, do saxofonista americano Kamasi Washington, em cujo dicionário não contam os vocábulos “modéstia” ou “moderação”. Depois de uma participação badalada no não menos badalado To Pimp a Butterfly, o elogiado disco de Kendrick Lamar (2015), ele já havia lançado um álbum triplo solo, apropriadamente intitulado Epic, considerado sua estreia oficial. Antes, havia feito três discos independentes, com pouca repercussão.
Em Epic, Washington usou uma orquestra com 32 músicos, um coro de 20 pessoas e o coletivo West Coast Get Down (formado por alguns dos mais requisitados músicos de Los Angeles). Em Earth & Heaven, ele se vale de quase a mesma quantidade de gente para enveredar pelo território da filosofia e da cosmologia. Fez, por fim, um álbum conceitual: o primeiro disco contém temas referentes à Terra, o segundo ao Céu. O concreto e o abstrato. Porém, não há nada obviamente pinkfloydiano nesta viagem, nem efeitos especiais que emulem supostos ruídos do espaço ou de astronaves. Heaven & Earth, feito Alphaville, de Jean-Luc Goddard, é o futuro, mas com cenários e personagens vestindo trajes do passado.
O disco é aberto com o tema de um filme de Bruce Lee, Fist for Fury (1972, no Brasil A Fúria do Dragão). Mas enquanto na trilha o tema é curto, uma canção pop comum (de Joseph Koo), com Kamasi Washington é jazz com colorações dos anos 1970, quase dez minutos de duração e um longo e furioso improviso de sax, que, por momentos, soa como John Coltrane no tempo da sua cascata de notas.
Kamasi Washington parece querer abrigar todas as fases do jazz em um só disco. Fez isto em Epic e torna a repetir em Earth & Heaven, em dose menor, ainda que em um álbum duplo (a edição super de luxe traz um terceiro disco). Paradoxalmente, Washington e seu séquito de instrumentistas e de vocalistas aparentemente não empurram adiante as fronteiras do jazz, mas, ao mesmo tempo, fazem neste álbum o que ninguém fez antes. Misturaram escolas distintas, e até mesmo antagônicas, como o experimental Sun Ra com o jazz fusion dos 1970, numa fusão que funciona sem atritos.
Da classe de 1981, nascido em Inglewood, Los Angeles, onde surgiu o gangsta rap, Kamasi Washington começou a tocar sax tenor e fez faculdade de etnomusicologia na Universidade da Califórnia. Não demorou a ter o talento reconhecido por nomes consagrados do jazz, como Herbie Hancock, Wayne Shorter, George Duke, e do rap, como Naas e Snoop Dog, entre outros. Escrever os arranjos de cordas e tocar sax no citado To Pimp a Butterfly (e também em Damn, ainda de Kendrick Lamar) foram trabalhos que lhe serviram de vitrine e que o ajudaram a dar vazão à música que tinha na cabeça. Ele surpreendeu, não apenas pela ousadia de um músico, relativamente desconhecido, lançar um álbum com uma trinca de discos, mas igualmente pela quantidade de informações que Epic trazia. Earth & Heaven é ainda mais ousado, pretensioso, mas com um conteúdo que justifica a ambição.
Com Epic, ele trouxe o jazz de volta aos grandes festivais, como Miles Davis fazia nos anos 1970. A música de Kamasi Washington é para grandes espaços. Connections, faixa do disco Earth, lembra o que Miles fazia na década de 1980, deixando um solista nos improvisos, com intervenções de sax, e todos os músicos segurando o groove. Música para grandes plateias. Do mesmo disco, Tiffakonkae usa o conceito de big band, feito um Duke Ellington contemporâneo, com exuberantes solos de sax do bandleader e do extraordinário piano de Cameron Graves. Aliás, a banda é farta em músicos extremamente talentosos, como Stephen Thundercat, um contrabaixista que já é figura carimbada na nova cena do jazz.
Há algo da bossa nova do tenorista Stan Getz em The Invincible Youth, que começa caótica, com 50 segundos de free jazz, para passar a um cocktail jazz, virar ligeiramente um hard bop e, então, adentrar o fusion, com um baixão no groove – tudo isso antes de retomar, por breves segundos, o free. Uma salada que soa indigesta. O mais incrível é que dá certo na prática.
ÉPICO
Heaven não deixa de escapar do óbvio. Seus oito temas, que duram 73 minutos, são mais compassados, etéreos, porém Kamasi Washington continua a surpreender e a ratificar o grande arranjador que é. The Space Travellers Lullaby, que abre o segundo disco, tem cordas melífluas e coros angelicais, mas nunca demasiadamente adocicados. Quando a música sobe, aproximando-se de um tema final de trilha sonora, entram outras sonoridades (com dois grandes bateristas, Tony Austin e Ronald Bruner Jr).
O coral celestial e as cordas predominam no segundo disco, o “espiritual”, mas a pletora de músicos convocados para o disco evita que a música tenda à new age. Heaven & Earth termina grandioso, como uma missa erudita. A faixa final Will You Sing é apoteótica. Coral com todas as vozes, os dois bateristas em levadas diferentes, mas, em contraponto, um solo antológico de trombone (por Ryan Porter), o sax, a guitarra e o grand finale com o coro celestial. O álbum poderia ter o título de Epic II.