Quando morreu, sozinho, em um hospital público de Nova York, com apenas 49 anos, Julius Eastman levou com ele boa parte de seu trabalho. Negro e gay no cenário predominantemente heterosexual e branco da vanguarda nova-iorquina, o pianista, vocalista, compositor e bailarino levou uma vida errática que apagou quase toda sua obra – em 1983, já tornara-se um sem-teto sem carreira que perdeu muitas das suas partituras.
No entanto, a música de Eastman vem sendo redescoberta e exaltada pela sua construção singular, que funde elementos da música pop negra com a composição minimalista e provocação política, como em Evil Nigger e Gay Guerrila. Primeiro veio o box de três CDs Unjust Malaise (2005), que o colocou história da música do século XX. Na sequência foi o livro de ensaios Gay Guerrilla: Julius Eastman and His Music (2015). E agora o lançamento do álbum Femenine dá continuidade ao processo.
Eastman iniciou sua carreira no início dos anos 1970, como membro do Sem Ensemble, tocando ao lado dos destacados Morton Feldman, John Cage e Pauline Oliveros. Seu nome foi ganhando notoriedade nos recitais, culminando com a participação na ópera Oito Canções para um Rei Louco, de Peter Maxwell Davies, indicada ao Grammy em 1973.
Mas ele desafiava constantemente a conduta de seu círculo social. Em 1975, durante uma apresentação do Sem Ensemble de peças de John Cage, com o compositor no palco, Eastman despiu um voluntário da plateia (provavelmente seu namorado) enquanto fazia insinuações sexuais – o que Cage considerou um ultraje. O consagrado maestro Pierre Boulez queria fazer com Eastman uma nova versão Oito Canções Para um Rei Louco, mas Eastman preferiu se jogar no underground nova-iorquino, trabalhando com a cantora Meredith Monk e, principalmente, o violoncelista Arthur Russell - chegou a tocar no álbum 24→24 Music do Dinosaur L.
Em meados de 1981, Julius Eastman foi despejado de seu apartamento no East Village por conta de aluguel não pago. Todos os seus pertences, incluindo sua música, ficaram no meio da rua e, quando ele não retornou, foram levados pelo caminhão de lixo. Sem-teto, afundou-se no vício do álcool e drogas. Falecido em 1991, ficou tempos esquecido e seu primeiro obituário só foi publicado oito meses depois.
Femenine
A angústia de Eastman é mais sentida na série Nigger – incluindo as peças Nigger Faggot, Crazy Nigger, Evil Nigger, entre outras. Femenine tem mais a ver com a relação da música com a construção de espaços e ambiências. Executada pelo Sem Ensemble num concerto em 1971, com Eastman no piano, a peça não tem marcações definidas de andamento, apenas indicações de duração para cada sessão. O número de instrumentistas envolvidos é nebuloso, mas estima-se algo entre 12 e 15 músicos.
Durante os 70 minutos da música, vão surgindo e sobrepondo-se camadas instrumentais diferentes. Começa lentamente com sinos de trenó, adicionando toques de vibrafone, piano, sopros de madeira e assim por diante, aos poucos formando uma atmosfera esfumaçadam imersiva e terminando do mesmo modo que começou – como que vindo e partindo ao nada. Aponta para uma sensação de infinitude: a música vem de longe e vai ao longe.
Este procedimento é similar a obras clássicas como o Bolero de Maurice Ravel e a In C de Terry Riley. Eastman, no entanto, traz outras abordagens, outras concepções, em diálogo com a música afro-americana. Femenine tem, como observa a musicista e pesquisadora Mary Jane Leach, “a fluidez do jazz e um balanço que está faltando, especialmente em Steve Reich”.