COMEMORAÇÃO

Os 150 anos da fantasia de Alice no País das Maravilhas

O clássico infantil de Lewis Carroll já foi traduzido para 174 línguas e teve 18 adaptações cinematográficas

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 04/07/2015 às 5:16
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O clássico infantil de Lewis Carroll já foi traduzido para 174 línguas e teve 18 adaptações cinematográficas - FOTO: l/Divulgação
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Em um passeio de barco em 1862, o matemático inglês Charles Dodgson criou uma história para divertir uma garota de 10 anos, Alice Liddell, e suas duas irmãs. A menina adorou de imediato o enredo inesperado que envolvia uma criança com seu nome. Assinando com o nome de Lewis Carroll, o matemático foi ampliando e trabalhando a narrativa, a pedido da jovem amiga, e, ao ver que mais crianças gostavam dessa – até hoje – impressionante viagem pela toca de um coelho, começou a prepará-la para publicação. Assim, há exatos 150 anos, o clássico Alice no País das Maravilhas era editado e mostrava a seus inúmeros leitores as portas do inconsciente, do absurdo e da fantasia.

A primeira edição circulou com uma tiragem de 2 mil exemplares, recolhidos posteriormente porque o ilustrador da obra, John Tenniel, não aprovou a qualidade gráfica. Não demorou muito para aquele texto – que não é necessariamente infantil e surpreende justamente por evitar passar lições de moral – se tornasse um clássico. Para estimar a relevância da obra, é só pensar que ele já foi traduzido para 174 línguas e teve 18 adaptações para o cinema.

Em Alice – Edição Comentada (Jorge Zahar), Martin Gardner, especialista no livro, desvenda vários segredos por trás da narrativa. Descreve Carroll como um homem de altura mediana, magro, surdo de um ouvido, gago, um pouco esnobe e, sem dúvida, neurótico. A relação do autor com a criança Alice, sempre um tema alvo de controvérsias, também é comentada. O autor teve várias amizades com meninas jovens, e Gardner afirma que o autor era apaixonado por Alice Liddell, mas só platonicamente. O mais provável é que ele tenha até pedido à família a mão da garota em casamento para quando crescesse, motivo do misterioso rompimento mais tarde.

A obra, segundo o pesquisador, permite várias abordagens através dos sonhos e do inconsciente. É por isso que Alice no País das Maravilhas é uma obra superanalisada do ponto de psiquiátrico, mas não só dele. “Como Homero, a Bíblia e todas as outras grandes obras de fantasia, os livros de Alice prestam-se facilmente a qualquer tipo de interpretação simbólica – política, metafísica ou freudiana”, ressalta Gardner.

UNIVERSAL E BRITÂNICA
Apesar da sua inquestionável universalidade, Alice no País das Maravilhas tem traços tipicamente britânicos. Ao menos segundo o embaixador do Reino Unido no Brasil, Alex Ellis, que veio a Recife para celebrar o aniversário da Rainha e a data de criação do livro com uma festa.

“É um livro que influenciou muito a cultura mundial. Nunca me esqueço de quando li Kafka e percebi a influência de Lewis. É uma obra também universal, mas com alguns traços muito britânicos: essa estranha combinação de excentricidade e instituições. O Reino Unido é um lugar que vive a excentricidade”, explica.

Martin Gardner, em Alice – Edição Comentada, lembra que o absurdo de personagens como o Chapeleiro Maluco, o Coelho Branco, o Gato de Cheshire, a Rainha de Copas e a Lagarta Azul nasce, na verdade, de trocadilhos e jogos linguísticos que “teriam assumido formas completamente diversas se Carroll estivesse escrevendo, digamos, em francês”.

A data tem sido celebrada no Reino Unido com exposições e concursos culturais. Uma das homenagens mais singulares vem do vocalista do Blur, Damon Albarn, que trocou a viagem pela toca do coelho por um mergulho em um estranho mundo online.

O ilustrador pernambucano radicado em Brasília Jô Oliveira, que já criou suas próprias imagens para uma edição de Alice no País das Maravilhas e é fanático pelo livro, lembra que movimentos artísticos como o surrealismo beberam na fonte da obra. A influência sobre Franz Kafka é vez ou outra apontada, mas o russo radicado nos Estados Unidos Vladimir Nabokov era um grande admirador da narrativa e chegou a traduzi-la para o seu idioma materno.

Jô Oliveira tem mais de 80 exemplares de diferentes versões do livro. O fascínio começou quando ele morou na Hungria e se deparou com uma edição original da obra. “Como sou apaixonado por xilogravura, fiquei impressionado com o trabalho de Tenniel”, conta. Ele mesmo criou, tempos depois, sua própria versão para a tradução de Ana Maria Machado. Como a edição valorizava o uso das expressões e do imaginário brasileiro, fez as ilustrações baseadas no universo da xilogravura nordestina.

“A cada vez que se lê o livro se acha algo diferente. É um livro de passagem, afinal, ela cai em um buraco ao seguir um coelho vestido. Termina em outra dimensão, cresce, diminui, conversa com animais. É um livro que rompe com a tradição moralista porque, antes tudo, tinha um lado didático, com conceitos religiosos e morais. Lewis Carroll cria um livro absurdo, com um final sem lições”, descreve o ilustrador.

Ele ainda destaca que Alice, apesar do seu apelo para crianças, não traz um texto simplesmente infantil. “Tanto que o próprio Carroll fez uma versão para crianças do livro”, aponta Jô. Ele ainda listou seus três ilustradores preferidos da obra, todos ingleses: John Tenniel (1865), Arthur Rackham (1907) e Ralph Steadman (1967). Destaca Tenniel “pela precisão dos traços e por ser muito fiel ao texto”; Rackham por ser, talvez, “o melhor ilustrador de livro infantil de todos os tempos”; e Steadman por ter fugido da influência de Tenniel, em um trabalho “mais recente e bem moderno”.

No final, Alice permanece como um universo inesgotável em suas influências e em suas interpretações. O poeta inglês W. H. Auden já disse que os livros de Carroll sobre Alice provocam duas questões. A primeira é sobre como o livro proporciona descobertas de mundos para as crianças. A segunda, e talvez mais importante, é: em que medida o mundo realmente é assim? Alice, parece dizer o poeta, é um belo guia de visitas para o inusitado e para o surreal que se esconde por baixo da normalidade.

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