Autodidata

Ícone da arte naïf, Alcides Santos morreu no esquecimento

Pernambucano foi um dos grandes nomes da pintura nos anos 1970

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 02/04/2018 às 15:32
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Pernambucano foi um dos grandes nomes da pintura nos anos 1970 - FOTO: Reprodução
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Em 1971, dom Gerardo Martins, à frente da Galeria do Rosário, na Igreja dos Rosários dos Pretos, se preparava para apresentar à sociedade Alcides Santos, artista cujos traços originais não se atrelavam aos academicismos. Em um texto publicado no Diário de Pernambuco, ele explica: “É um pintor ingênuo, desculpem-me o adjetivo. Trata-se, porém, de um autêntico ingênuo tocado pelo surrealismo e pelo lirismo, qualidade rara em artistas arrolados no gênero. Talvez, só nos maiores. É uma pintura sombria, como o próprio artista. É pintor de longa-metragem. Dou-lhe um crédito de confiança bastante largo. Só o futuro poderá dizer se tenho razão, pois, o melhor crítico de arte, chama-se, ainda, cinquenta anos depois”. Sua aposta não poderia estar mais certa: Alcides se tornaria um fenômeno de repercussão nacional, mas, após atingir o auge, ele foi relegado ao ostracismo ao ponto de sua morte, em meados de 2008 (não se sabe a data exata), ter passado batida, sem destaque na mídia ou até dentro da própria classe artística.

Mas o que teria acontecido para que um nome tão original das nossas artes plásticas, que dividiu os holofotes com artistas como Francisco Brennand, Reynaldo Fonseca e Wellington Virgolino, entre outros, terminasse seus dias no esquecimento? É difícil achar uma resposta simplista, pois, assim como seus trabalhos, a vida de Alcides Santos nunca foi de linhas retas e sim de traços originais e cores marcantes.

Nascido em 1945, no Recife, Alcides teve uma origem humilde e desenvolveu o talento para pintura incentivado pelo artista plástico Antônio Cavalcanti, de quem era enfermeiro, em meados dos anos 1960.

“Alcides contava que um dia Antônio perguntou se ele tinha interesse em pintar e, quando ele respondeu que sim, ele começou a transmitir seus conhecimentos. Ele, inclusive, passou para Alcides uma técnica muito pessoal, que não passou para mais ninguém, de preparação da tela, do uso das cores. Com o que aprendeu, ele deu um toque próprio a sua arte”, pontua o artista plástico José Ferreira de Carvalho, grande amigo de Alcides Santos.

O trabalho de Alcides é classificado pelos críticos como parte do movimento da arte naïf ou primitiva, marcado por artistas sem conhecimento de técnicas acadêmicas e que, justamente por isso, tem entre seus grandes diferenciais a liberdade estética. A originalidade do artista plástico, aliás, foi o que chamou a atenção do marchand Carlos Ranulpho.

“Conheci as obras de Alcides na Igreja do Rosário dos Pretos. Fiquei intrigado de imediato pela peculiaridade de sua arte. As cores, as formas e os personagens que ele ornava eram atraentes e originais. Poucos artistas conseguiram construir um universo pictórico tão sólido, diverso e interessante quanto Alcides. Ele deixava sua marca nos mínimos detalhes das telas”, lembra o marchand.

Ranulpho, então, convidou Alcides para trabalhar com ele e ofereceu um contrato de exclusividade, em 1973, através do qual ele poderia se dedicar exclusivamente à pintura. Alcides Santos e a família se mudaram do Córrego José Grande para uma casa espaçosa em Casa Forte e, durante toda a década de 1970 e meados de 1980, ele se firmou no cenário local e nacional, participando de várias coletivas e se destacando em eventos como a Bienal de São Paulo.

O artista plástico era figura carimbada nos jornais e recebia muitos elogios de seus contemporâneos. Sobre sua pintura, Ariano Suassuna afirmou que “é como se entrássemos na representação plástica do mundo maravilhoso, porém sinistro, sinuoso e meio demente dos folhetos e contos populares nordestinos”.

Em suas telas, como observa Olívio Tavares de Araújo na apresentação da exposição O Universo Alquimista de Alcides Santos, de 1979, há um caráter terapêutico, com símbolos religiosos, da cultura popular, e elementos que expressam suas crises de depressão e conflitos internos.

“Ele tem um traçado genial e a forma como usa as cores me surpreende muito. É uma pena que o trabalho dele seja tão pouco conhecido atualmente”, lamenta a galerista Edna Pontes, que possui 15 telas do pernambucano. Ela acredita que parte desse desinteresse pela obra do artista se dê por um certo preconceito que se mantém em relação à arte popular.

DIFICULDADES

Em meados dos anos 1980, Alcides se mudou para Fortaleza, seguindo sua então companheira, mas não foi bem sucedido na capital cearense. Pouco se sabe sobre sua vida desse período em diante. José Ferreira é um dos únicos a ter mantido contato com o pintor.

“Um dia, soube que ele estava de volta ao Recife, fui atrás e ele me contou que estava passando por dificuldades. Passei a ajudar, pegando os quadros dele para vender. Ele estava morando com a filha no Ipsep, mas depois se mudou para Paulista, para o quartinho de sua companheira na época. Quando fui lá, ele reclamou que já não enxergava direito por conta da diabetes. Estava debilitado. Depois, passei um tempo fora e não tive mais notícias. Fui várias vezes na casa dele, mas ninguém atendia. Quase um ano depois soube que ele tinha falecido no completo ostracismo”, lembra Ferreira.

Prolífica, a obra de Alcides Santos ainda tem muito a ser explorada. Ranulpho, por exemplo, sempre costuma incluir telas do artista em suas exposições coletivas a fim de ressaltar sua importância. Ferreira também possui quadros do amigo, que ele guarda com carinho.

“Ele morreu esquecido. O que é uma grande contradição e injustiça, pois ao longo dos anos 1970 seu mérito foi reconhecido por diversos críticos e instituições, inclusive internacionais. Acredito que o fato de ele ter sido um artista negro, de origem humilde e naïf foram elementos que contribuíram para o seu esquecimento no cenário artístico nacional. Mas seu trabalho está vivo e à espera de ser redescoberto”, pontua Ranulpho.

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