
De olhos baixos, o designer André Lasmar caminha, ora pelas ruas do Recife – manguetown que este potiguar chama de sua desde 1980 – ora pelas vias do Rio de Janeiro, cidade maravilhosa que o acolhe desde que se mudou para lá, no ano de 2001. A razão para tal comportamento não está num ensimesmamento ou, por outra, não está só nesse traço de sua personalidade. André é, sim, um pouco recolhido, mais apegado ao interior que ao exterior, mas a força maior que dirige sua mira tem origem nas funções que tomou para si: a de arqueólogo urbano e a de acumulador. Com essas duas denominações, ele resume seu trabalho, embora o público em geral o reconheça mais como joalheiro.
Joias no Asfalto é a coleção que ele está preparando no momento, e que deve ser brevemente exposta pelo designer, ainda em local e data a serem definidos. A importância, especificamente dessa seleção de peças, está no seu caráter aglutinador, como se, de certa forma, ela resumisse num parágrafo, breve mas incisivo, o núcleo duro da obra que o artista vem desenvolvendo desde que “ser joalheiro” não era uma profissão com a qual se sonhava.
Vale a pena, então, visitar o passado para entender como tudo se originou. Um dos mais expressivos e autorais representantes de sua geração, André fez parte de uma leva de jovens criativos que vislumbraram na joalheria uma plataforma de expressão artística, pretendendo ir além do adorno ao fazer das pequenas esculturas também uma asserção conceitual. Se as paredes sustentavam as telas de arte contemporânea com renovado vigor, então, por que não se valer de colos, pescoços, pulsos e dedos para a mesma função: dar suporte ao meio que era, ao mesmo tempo, mensagem?
Era uma época em que André Lasmar estava diante de uma hesitação tão comum à idade: qual rumo profissional deveria seguir? Nada parecia cabê-lo. “Eu queria algo que me arrebatasse”, confessa. Até que, num passeio por São Paulo, entrou na joalheria de Renato Camargo para apreciar mais de perto um colar. Foi abordado por um homem, que lhe disse: “Fui eu quem fiz”. A afirmação encontrou ouvidos descrentes. O futuro joalheiro jurava que máquinas, e não pessoas, faziam joias, como numa fábrica de biscoitos.
Ficou sabendo, então, que além da venda, Renato Camargo mantinha um curso que era procurado tanto por aprendizes quanto por profissionais que desejavam se aprimorar. Ao voltar ao Recife, comunicou ao pai a “decisão” de aprender o ofício. “Tudo bem”, foi a resposta, “mas termine uma faculdade primeiro”, condicionou, sem espaço para debates. “O curso mais rápido que eu consegui achar – e que tivesse algo a ver com minha vocação – foi o de artes na UFPE”. A promessa foi cumprida ao pé da letra: “No último dia já estava de malas prontas”, diz André.
A gente está falando dos anos 1980, uma época no Recife que quem viveu não esquece. “A característica maior desta geração era um faça você mesmo, muito irreverente e... iconoclasta. Seu signo-mor; o paradoxo”, descreve em seu blog o ator, diretor, professor e dramaturgo Moisés Neto.
Uma rede social, analógica, estabeleceu-se entre os componentes dessa década no cenário recifense. Oriundos de vários campos de interesse, eles frequentavam os mesmos lugares, consumiam os mesmos produtos culturais, mas os processavam cada um à sua maneira, de forma compartilhada. Tal qual vemos hoje, de modo virtual. André Lasmar estava entre aqueles que costuraram o tecido que serviria como matriz para a efervescência cultural pernambucana em década por vir
VIDA NOVA
Ao abrir a porta, como aprendiz, da primeira oficina de joias que jamais vira em sua vida, o pernambucano-potiguar sentiu o desânimo cair como uma bigorna no peito. A visão não poderia ser pior para a “pessoa que ele achava que era”. Nas bancadas espalhadas pelo salão, estavam itens como fogo, ácido, martelo, serra, chave de fenda, alicate e furadeira: “No que foi que eu me meti”, foi o pensamento que lhe veio à mente.
Os três anos em São Paulo lhe renderam a profissão que ele abraçou em definitivo. Primeiramente, lutando contra a habilidade e a agilidade que pareciam escorrer pelos dedos. Confeccionar um simples anel com volumes superpostos exigiu-lhe quase mais do que podia suportar. Até que “a coisa foi chegando”, forjada com calma e paciência que são fundamentais no métier. Ele era, afinal, a pessoa que não sabia ser.
Ao longo do curso, à medida em que confeccionava suas primeiras joias, ia encontrando sua clientela. O amigo que viu o tal anel no dedo dele e encomendou um igual; o amigo do amigo, e assim por diante. A vida era dura nos cruzamentos paulistas. “Morávamos mal, comíamos mal, trabalhávamos muito, mas nos divertíamos à beça”, recorda-se.
Mas foi a dureza imposta pela megalópole que o fez retornar ao Recife. “Achava que toda aquela luta não iria me dar o equilíbrio emocional para fazer o que precisava ser feito. Na minha cidade, ao lado dos meus, pensava poder relaxar e me dedicar a criar joias. Fui mimado”, entrega André Lasmar.
Os anos 1980 proporcionaram um boom em todos os segmentos das artes visuais, e o design de joias não ficou à parte. Tantos foram os nomes que enveredaram pela trilha, quantos foram aqueles que a abandonaram quando o mercado arrefeceu. “Não era fácil vender uma joia, muito menos aquelas que fugiam dos padrões clássicos. Mas se eu cobrasse um real por cada elogio recebido teria feito um bom dinheiro”, diverte-se André.
Em 2000, beneficiado por uma bolsa de estudos, partiu para temporada de um ano na Espanha. E foi na cidade de Barcelona, onde se fixou, que sentiu pela primeira vez estar numa espécie de encruzilhada na qual todos os lugares que já havia visitado antes pareciam se entrecruzar.
De repente, ele, que havia aceitado atravessar o oceano como forma de limpar o HD – zerar para ordenar os pensamentos – se deu conta de que, ao longo do caminho, havia recolhido, inúmeras vezes, de vários lugares, pequenos suvenires. Não desses vendidos em lojas de museus, mas aqueles aos quais ninguém parece prestar atenção: pedaços de alguma coisa, que lhe capturavam o olhar fosse pela forma, pelo volume, pela maneira como se incrustava em alguma superfície, pelas reminiscências que despertavam, pelas histórias interrompidas que contavam. Ou tudo isso junto. Quando percebia que, por algum motivo, não poderia carregar consigo o objeto, fotografava-o em seu hábitat. Porque a memória, vocês sabem, é uma inconfidente, que torce a informação em prol de sua causa.
De volta ao Brasil, já instalado no Rio de Janeiro, em 2001, pensou em montar a mostra Arqueologia Urbana, como forma de revelar para o mundo sua profissão recém-descoberta. Mas, postergou, não havia chegado o momento. Ela se materializa agora com outro título, e um recorte mais detalhado desse macrocosmo. Em Joias no Asfalto, André Lasmar se concentra nos tais suvenires que ele fotografou nos locais de origem. O concreto fazendo as vezes do suporte, o metal nele encravado como pedra preciosa. Quando a mostra estiver montada, as fotografias estarão lá, ao lado das joias, enfatizando que elas têm a mesma origem, um único pai: o poder de abstração e ressignificação que reside em quem toma para si a missão de fazer e desfazer.
André Lasmar trabalha com materiais de alto valor (prata, ouro, diamantes, pedras preciosas e semipreciosas), mas não gosta de chamá-los de “nobres”, porque, para ele, a nobreza tem outra estirpe e demasiadas origens para ser limitada. Desde sempre, busca acoplar elementos corriqueiros: borracha, madeira, chifre. É como se descesse um toque de humanidade na mistura com o sagrado e indiscutível. O resultado aparece em peças propositalmente “sujas”, escuras como o asfalto, iluminadas como as lembranças que ficaram pelo caminho.