Cuidar da infância Yanomami é proteger o futuro da floresta
Estudo do Unicef revela o que é nascer e crescer Yanomami e alerta: sem políticas públicas contínuas, a maior terra indígena do Brasil segue em risco

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“A infância Yanomami é muito rica e variada. Ela se caracteriza por liberdade, autonomia, contato direto com a natureza e participação comunitária. Uma criança Yanomami é feliz — não é uma criança desnutrida".
A fala de Gregory Bulit, chefe de emergências do Unicef Brasil, resume o que está em jogo quando se fala sobre proteger a infância no coração da Amazônia.
Para ele, o que as imagens da crise sanitária mostraram — crianças debilitadas, filas por atendimento e aldeias tomadas pelo garimpo — não representam o que esse povo é, mas o que a violação sistemática de seus direitos produziu.
O estudo “Infância e Juventude Yanomami: o que significa ser criança e os desafios urgentes na Terra Indígena Yanomami”, lançado nesta quarta-feira (15) pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), dá corpo a essa visão.
Elaborada com apoio da Hutukara Associação Yanomami (HAY) e da Urihi Associação Yanomami, mais do que números, a publicação sistematiza, pela primeira vez, o que significa ser criança e jovem entre os Yanomami a partir de sua própria cosmologia.
O documento é um guia para quem formula políticas públicas e atua na maior terra indígena do Brasil, que abriga 31 mil pessoas em 376 comunidades nos Estados de Roraima e Amazonas, das quais, 75% têm menos de 30 anos de idade.
Liberdade, aprendizado e pertencimento
Entre os Yanomami, crescer é um processo de liberdade e aprendizado pela convivência. As crianças acompanham os pais nas caçadas, ajudam nas roças, brincam nos igarapés e aprendem observando.
“A infância é marcada por autonomia e por uma participação plena na vida da comunidade. Desde cedo, meninos e meninas aprendem o valor da reciprocidade e da generosidade, que sustentam o modo de vida Yanomami”, explica o relatório.
Essa concepção, que rompe com a ideia ocidental de infância como fase de dependência, ajuda a entender por que o rompimento da relação com a floresta (seja pela presença do garimpo, seja pela contaminação dos rios por mercúrio) tem impactos diretos sobre a saúde e o desenvolvimento das crianças.
Em 2023, a decretação da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) expôs a gravidade do quadro: desnutrição, malária e doenças respiratórias vitimaram dezenas de crianças.
Hoje, embora a situação tenha melhorado, o alerta segue aceso. “Ainda há muito a fazer. As equipes de saúde enfrentam desafios logísticos imensos para chegar às aldeias remotas, e o Unicef recomenda continuar os esforços para garantir atenção integral e contínua”, afirma Bulit.
Do garimpo ao desequilíbrio da vida
O estudo converge para um ponto central: a proteção territorial é a base da saúde Yanomami. “A invasão ilegal tem impacto imenso sobre a saúde e a nutrição das crianças. O garimpo contamina os rios com mercúrio, afeta a alimentação e está associado a casos de exploração sexual, o que tem efeitos duradouros na saúde física e mental das meninas e mulheres”, diz o porta-voz.
Além de devastar o ambiente, o garimpo desestrutura os modos tradicionais de subsistência, interrompe ciclos de cultivo e impõe dependência de cestas básicas e atendimentos emergenciais.
Para o Unicef, sem floresta protegida, não há infância protegida. “Garantir o futuro dessa geração passa, necessariamente, por impedir novas invasões e fortalecer as políticas públicas específicas e culturalmente sensíveis”, reforça Bulit.
Saúde com diálogo e respeito cultural
O relatório também chama atenção para o choque cultural nos serviços de saúde. Mulheres Yanomami relatam experiências traumáticas em partos hospitalares, da impossibilidade de falar em sua língua à ausência de familiares e imposição de procedimentos desconhecidos.
“Cuidar da saúde Yanomami exige compreender que o adoecimento, para eles, não é apenas físico: envolve dimensões espirituais e comunitárias”, observa o documento.
Bulit reforça que as políticas públicas precisam ser “sensíveis e culturalmente adaptadas a esse povo, feitas com eles e não apenas para eles”.
O Unicef defende que o diálogo entre o saber tradicional e o sistema de saúde ocidental seja contínuo, com formação de agentes indígenas, presença de intérpretes e respeito às práticas xamânicas e à visão própria de corpo e cura.
Um guia para agir
Mais do que um diagnóstico, o relatório é um instrumento de ação. Ele recomenda:
- Fortalecer políticas públicas específicas e diferenciadas para os povos Yanomami;
- Garantir a proteção territorial e combater o garimpo ilegal como condição básica de sobrevivência;
- Reconhecer e apoiar as organizações indígenas, como a HAY e a Urihi, protagonistas na defesa dos direitos;
- Escutar crianças e jovens, valorizando suas vozes e saberes na construção de políticas.
“O estudo oferece uma visão sistematizada, para que governos e organizações encontrem, em um só lugar, as informações necessárias sobre a infância Yanomami e possam agir com base nelas”, explica Bulit.