Por Wagner Sarmento*
Nunca haverá um cronista esportivo como Nelson Rodrigues assim como jamais existirá outro Pelé. A extravagância da afirmação decerto seria aplaudida por este gênio da palavra, tão afeito a exageros. Nelson era um mentiroso do bem. Odiava a imparcialidade água com açúcar, a isenção inodora, a chatice institucional dos burocratas das letras, a receita de bolo do lide jornalístico. Entre o quem, o quando, o onde, o como e o por quê, há sempre o imponderável, aquilo que todo mundo olha e quase ninguém vê.
Nas linhas rodriguianas, não havia partida maçante. O jogo até podia ser chato, mas seu atrevimento reescrevia a história e criava uma epopeia. O retoque textual era o camisa 10 infalível, que fazia um 0 a 0 insuportável virar guerra ou poesia, riso ou choro.
Esqueça o placar final, os esquemas táticos, as substituições do técnico, as falhas de posicionamento, as tabelas bem treinadas. Isso tudo era arremedo de irrelevância no bojo de adjetivos e emoções impressos a cada crônica. O quadradismo raso cabia aos idiotas da objetividade, que Nelson combatia com o vigor de um beque e a sede de um centroavante.
O pernambucano mais carioca de todos jamais aceitou o simplismo. Enveredou por estradas espinhosas para, por detrás, colher as rosas mais vermelhas, sangradas. Escalava palavra por palavra como se numa mesma frase jogassem Pelé, Maradona, Cruyff, Ronaldo, Zidane e Messi. Nelson era todos juntos. Era a possibilidade do impossível.
Florentino Pérez, presidente do Real Madrid e artífice dos Galácticos, disse certa vez que o futebol só será pleno no dia em que as balizas não forem mais necessárias. Sem saber, descreveu a essência rodriguiana. Nelson sempre viu o esporte bretão como algo que vai muito além de um jogo de bola com vencedores e perdedores.
Dramaturgo por excelência, Nelson Rodrigues via um teatro em cada jogo. Na encenação da bola, um minuto podia transformar o trágico em épico, o herói em vilão. Não sabia a escalação do time adversário, não se prendia a detalhes informativos, não queria saber quem perdeu o gol feito. Escreveu que o pior cego é o que só vê a bola. Preferia observar o uivo da torcida, a apatia do craque, o instinto do matador, a desfaçatez do gandula, a canalhice do juiz, a indecência da vitória, o brilho que há na derrota, as entrelinhas de um gol, a redenção de um título. Fazia isso mesmo sendo quase cego. Fechava os olhos e deixava o coração anotar as impressões maravilhadas do espetáculo que traduzia, ipsis litteris, a alma do brasileiro.
Amou o Fluminense mais do que a si mesmo, definiu o Flamengo como ninguém jamais fez (chamou a camisa rubro-negra de bastilha inexpugnável) e eternizou o clássico sob o patrimônio imaterial de sua palavra certeira. Não, Nelson, o Fla-Flu não nasceu 40 minutos antes do nada; nasceu no 23 de agosto de 100 anos atrás, num Recife meio com cara de Maracanã em dia de domingo.
Wagner Sarmento é jornalista e integra a equipe da editoria de Brasil/Internacional do JC