Menos parelha do que indicavam as pesquisas, a disputa de votos entre a atual vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, e o ex-presidente Donald Trump, não demorou a revelar que o polêmico magnata venceria. Em apuração bem mais rápida do que em 2020, na qual Trump perdeu para Joe Biden e se recusou a aceitar a derrota, insuflando seguidores até a invadirem o Capitólio, a contagem das cédulas eleitorais não deu margem a grandes esperanças de virada para os democratas, nem para dúvidas acerca do resultado. O ensaio de revolta contra fraude tinha sido preparado, dias antes, e era de certo modo esperado, caso o republicano perdesse. Para Kamala Harris, abertas as urnas, não havia espaço para apelação: os norte-americanos expressaram o desejo majoritário de mudança, e de retorno ao ponto deixado por Trump quando saiu da Casa Branca.
A maior votação de um candidato republicano em duas décadas, e a conquista da maioria em estados cruciais para a soma necessária no colégio eleitoral, além de maioria no Senado e vantagem na Câmara de Deputados, fizeram do desempenho do presidente eleito um marco histórico, em um processo eleitoral que já era considerado marcante, mesmo sem sua conclusão. Num roteiro que incluiu o atentado à bala que lhe raspou a orelha, Trump passou por cima das chances de os democratas renovarem o mandato, de nada adiantando a troca de última hora de Biden por Kamala, num lance que pareceu remodelar o destino da eleição – mas a injeção de ânimo não saiu, pelo visto, da bolha democrata.
A contundente vitória de Trump sobre Kamala é mais do que a derrota de um partido que se reveza com o outro no exercício do poder da maior potência global. Na medida em que o republicano foi associado, dentro e fora do país, como um populista que afronta as instituições e a democracia, o alerta de seu imenso apoio popular, a exemplo de outros perfis considerados de direita no mundo, a derrota do Partido Democrata deve suscitar autocrítica e reflexão em diversos defensores da democracia.
Guardadas as proporções, e com inúmeras diferenças, é possível comparar a derrota do governo Biden e Kamala ao pífio desempenho da gestão Lula e do PT nas eleições municipais brasileiras deste ano. Há semelhanças no comportamento do eleitorado, aqui e lá, e em outros lugares do planeta onde se verifica uma dissociação das agendas públicas das demandas da população. Quando isso ocorre, o instrumento do voto é aproveitado para promover mudanças no poder. Parafraseando o técnico de futebol Muricy Ramalho, o voto, como a bola, pune.
Restaurar a escuta popular não é, no entanto, o único desafio dos que saem perdendo nas urnas. Há um problema de âmbito estrutural, quando a escolha de um governo representa um perigo para o sistema democrático. Além de balanços eleitorais, os democratas do mundo inteiro precisam encontrar formas de ressaltar os valores da democracia – porque fora dela, aí é que não há chance para apelo algum.